O Plenário do Supremo Tribunal Federal – STF, formou maioria, por dez votos a um, a favor da legalidade do inquérito policial para apurar as fake news, sobre possível disseminação de noticias falsas e ameaças a integrantes do órgão e de seus familares. O único voto contrário foi do Ministro Marco Aurélio Mello.
Essa decisão está gerando indignação entre juristas, advogados e grande parte da sociedade. A alegação é de retrocesso histórico e de inconstitucionalidades no ato. Essa arrojada interpretação ao arrepio das normas, abrirá um precedente perigoso, consolida o corporativismo vergonhoso, sem limites e desacredita ainda mais o poder judiciário que já sofre a pecha maldita de provocar insegurança jurídica no país , como foi o caso da repentina mudança de interpretação do princípio da presunção de inocência para salvar Lula.
Essa prática da suprema corte assemelha-se aos tempos do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, cuja justiça oferecia aos réus chances mínimas de defesa, transformando assim, via de regra, suspeitos em culpados. No Tribunal do Santo Ofício, o inquisidor era considerado a autoridade máxima e acumulava as funções de investigador e juiz, encerrando em suas mãos um enorme poder.
Dentre as peculiaridades que tornavam os tribunais do Santo Oficio mais temidos do que quaisquer outros de seu tempo, na visão do jurista, historiador e escritor espanhol Tomás y Valiente, podemos destacar a não distinção entre a fase de instrução e a probatória. O acusado poderia ser preso preventivamente apenas com indícios e antes de qualquer acusação formal como foi a prisão da ativista Sara Winter. (TOMÁS Y VALIENTE, 1980, p. 57-8).
No Santo Ofício o réu não tinha acesso aos traslados dos autos. O processo era continuamente alimentado com a inclusão de novas acusações e em segredo de justiça até o final. Neste particular advogados de investigados pelo STF no inquérito do fake news, reclamaram publicamente que não tiveram acesso aos autos de inquérito. E isto curiosamente é considerado crime pela Lei 13.869/2019 (pune abuso de autoridade) e não observado pelo infrator (um ministro do STF).
Ainda segundo Tomás, à amplitude do arbítrio do juiz, era muito maior nos tribunais da Inquisição. Uma das conseqüências da larga margem de arbítrio pessoal concedida ao inquisidor era a variação do ritmo processual. Exatamente como ocorre no judiciário do país ainda hoje: para os amigos a lentidão processual até a prescrição e para os inimigos a celeridade até a condenação e o trânsito em julgado.
Voltando ao tema central, a questão alvo de discussão no presente artigo é saber se o STF pode ou não instaurar um inquérito policial. Mas o que é um inquérito?
Poderíamos aqui discorrer sobre conceitos vários, mas vamos dizer apenas um: seria o procedimento de natureza investigativa, pré-processual, tendo por finalidade a elucidação de suposto fato criminoso investigado, com a autoria e circunstâncias do crime e que busca formar justa causa para a apresentação de uma ação penal. E o STF pode determinar abertura de inquérito de ofício?
A discussão tem tomado relevância na mídia e opinião pública em virtude do pedido de abertura de inquérito pelo presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, para fins de investigação de crimes contra a honra e ameaças a alguns ministros da Corte e seus familiares.
O pedido de abertura de inquérito encontra fundamento no art. 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), que dispõe verbis: ‘’Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro’’.
A CONTROVÉRSIA começa a surgir quanto a interpretação a ser dada ao dispositivo do RISTF, em relação a o que pode ser considerado “sede ou dependência do Tribunal”, que segundo o ministro presidente, interpreta-se extensivamente, de modo a permitir que qualquer crime cometido em face do STF e seus membros em todo território nacional, possa ser investigado a partir de inquérito iniciado de ofício pela corte, uma vez que o ministro é ministro em qualquer lugar; portanto, seriam eles, por ficção jurídica, extensão do próprio Supremo.
Mas as divergências não param por aí. Além de outros atropelos legais, o princípio da imparcialidade, moralidade e do juiz natural teriam sido quebrados a partir do momento em que os Ministros Alexandre de Morais e Dias Toffoli, driblaram o rito da distribuição (nos termos dos artigos 66, §§ 1º e 2º, e 67 do RISTF (Regimento Interno do STF) e o primeiro foi nomeado pelo presidente para coordenar os trabalhos. O próprio Ministro Marco Aurélio de Mello, sustenta que haveria de ter ocorrido um sorteio para escolha do Ministro coordenador, além de que a medida correta a ser tomada seria encaminhar os elementos de informação e solicitar ao MP (PGR) que procedesse com as investigações junto a Policia Federal.
A respeito do inquérito, o Código de Processo Penal, no art. 5º, inciso I e II dispõe que: Art. 5º Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado: I – de ofício; II – mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.
Parte da doutrina, ainda que minoritária (Aury Lopes Jr.), entende que o juiz, numa perspectiva adequada ao sistema acusatório, é sujeito imparcial e inerte, de modo que medidas de ofício alinham-se ao sistema inquisitorial, razão pela qual, não poderia o magistrado abrir inquérito ou determinar que o façam. A essa corrente nos filiamos!
Critica-se também o fato do Ministro Alexandre de Moraes, que coordena o inquérito, ser o mesmo que participa do julgamento, ordena diligências e decide sobre prisões e buscas e apreensões, além de ser uma das principais vítimas: uma conduta típica de não fazer inveja ao antigo e extinto Tribunal do Santo Ofício da Inquisição.
Tanto o juiz como o delegado de polícia ao investigarem um crime no âmbito de suas competências, deveria guardar respeito aos princípios informadores constitucionais direcionados à administração pública, notadamente aos princípios da imparcialidade e moralidade, nos termos do art. 37 da CRFB/88.
Assim, entendo que o simples fato de o inquérito policial ser considerado como peça informativa, não autoriza a condução das investigações por uma autoridade policial ou um magistrado vinculado (ainda mais sendo vítima com seus familiares) sob pena de se permitir uma apuração absolutamente parcial, onde interesses tanto de um como de outro iriam interferir positiva ou negativamente na averiguação das infrações penais, ainda que se esforce para o contrário, uma vez que é humanamente impossível distanciarmos 100% dos fatos a nós submetidos.
Portanto, com a devida vênia aos entendimentos contrários, em uma visão constitucional, advogo no sentido de que, ante a ocorrência de um motivo legal e a autoridade policial não se declarar suspeita de forma voluntária, conforme determinação do art. 107 do CPP, caberá sim ao interessado opor a suspeição, a fim de manter a desvinculação necessária para apuração dos fatos.
Conclusão: apesar da previsão no RISTF, na hipótese, não há como admitir a abertura de inquérito de ofício pelo STF, por dois motivos: 1) não é possível conferir interpretação extensiva ao disposto no art. 43 do RISTF. Quando a norma se refere a’’ sede ou dependência do Tribunal”, está delimitando espaço físico. Neste sentido, o inquérito somente poderia ser instaurado em face de crimes ocorridos na sede do STF e que envolvam autoridade ou pessoa sujeita a sua jurisdição. 2) o titular da ação penal é o Ministério Público e, em respeito ao sistema acusatório, e, nos termos do art. 40 do CPP, o correto é que a investigação seja requisitada pelo MP.