Ceres Costa Fernandes
Na segunda metade dos anos quarenta do século passado, nesta bela, e então tranquila, Ilha de Upaon-açu, aconteceu uma moda entre os jovens da classe média alta, patinar na Praça Gonçalves Dias; patinar, deslizar, dançar, voar nem tanto, sobre os pesados patins de ferro de quatro rodinhas, ajustáveis ao tamanho e largura dos sapatos de sola. A prática não era nova, nem os patins, seu uso vinha de mais longe. Dizem os historiadores que os protótipos para patinação fora do gelo – os do gelo, nem pensá-los por aqui – remontam ao século XIX. Desse “mais moderno” de quatro rodas, tenho notícias do meu próprio pai rapazote, nos anos trinta, descendo sobre eles, temerariamente, a Rua Montanha Russa. Fato registrado por meu futuro sogro que, preocupado, informou ao vizinho, meu avô, sobre o perigo da peripécia do seu desajuizado rapaz, protegendo o pai de sua futura nora, num tempo em que eu não era nem nascida.
O que era brincadeira isolada de meninos nos anos trinta, no meado da década de quarenta, transformou-se em tendência da jeunesse dorée da época. Talvez influência do modismo vindo dos Estados Unidos, implantado nesta longínqua província pelo cinema americano do pós- guerra, da Segunda Grande Guerra Mundial, em que os marines e os cowboys eram os heróis de todas as tribos de crianças e jovens. As duas Grandes Guerras e, acima de tudo, o cinema, construíram a imagem da América como a terra da liberdade e das oportunidades. Deixamos de imitar os franceses para sermos americanos.
Era no tempo das meninas com as suas saias meia-perna de flores miúdas ou de xadrez, sapatos abotinados, meias curtas e os indefectíveis laços nos cabelos – segundo vi nas raras fotografias das tias paternas, donas da minha admiração e meus modelos inquestionáveis de um comportamento futuro – patinando, mãos dadas com amigas, na Praça Gonçalves Dias. Não as vi em plena glória, cheguei a São Luís após este boom dos patins, mas esses um ou dois instantâneos mexeram com a minha capacidade de sonhar e passeiam nítidos no meu imaginário misturados às cenas dos musicais da Metro Goldwyn Meyer. Eu os vi ou sonhei?
A Praça Gonçalves Dias era, certamente, o ponto chique da cidade. Logradouro de beleza ímpar, carregado de história e tradição. Sabemos das antigas festas do Largo dos Remédios, narradas por João Lisboa e referidas por César Marques, e do cognome Largo dos Amores, em alusão ao malfadado amor de Gonçalves Dias e Ana Amélia – este concorre pari-passu com o nome de Praça Gonçalves Dias. No local, a única igreja gótica da cidade, com apóstolos cimeiros e vitrais de origem alemã (um tanto simplesinha, se confrontada com suas coirmãs brasileiras e europeias), as palmeiras imperiais, a brisa constante, a visão da baía de São Marcos, da foz do rio Anil e da Avenida Beira-Mar. No epicentro da praça, a estátua de Gonçalves Dias, inaugurada em 1873, retrata o poeta, de pé em uma coluna coríntia simbolizando uma palmeira, em cuja base, divisamos quatro medalhões com as efígies de João Francisco Lisboa, Sotero dos Reis, Odorico Mendes e Gomes de Souza. O poeta olha para além da baía, olha o mar do Maranhão, nos Atins, onde tragou o Bois de Boulogne e o poeta guardado no seu bojo.
Na praça e nos arredores da Avenida Rio Branco, então Rua dos Remédios, localizavam-se imponentes e senhoriais casarões que abrigavam algumas das melhores famílias da cidade. O Colégio São Luís, do Professor Luís Rêgo, situava-se na Avenida Rio Branco e ficava perto da praça; dele chegava-se a pé. O bonde Gonçalves Dias trazia moças e rapazes, alunos dos Maristas , Rosa Castro, Liceu, Escola Normal e Ateneu. Todo esse plantel de jovens ele vinha arrebanhando no caminho, até chegar ao seu destino. As meninas do Colégio Santa Tereza, colégio só para moças, esperavam o Gonçalves Dias na esquina da Farmácia Sanitária, na Praça João Lisboa, e nele, atravessavam a Rua Grande, em alarido, para encontrar, lá no Canto da Viração – onde o vento, em redemoinho, levantava a saia das moças – os alunos de todos os colégios mencionados. Chamávamos secretamente este bonde de o bonde do amor. Aconteciam os flertes, que se resumiam a olhares e, suprema audácia (!), um jovem ousava pagar a passagem de uma mocinha, fato repassada a ela pelo cobrador. O costume era baixar os olhos e corar até às orelhas. As mais desembaraçadas sorriam e faziam um gesto de agradecimento com a cabeça. Isso equivalia a um sim.
O ponto final do bonde era na praça. Para a volta, tinha que trocar a posição da lança. Era uma operação complexa, viravam-se os encostos dos bancos de madeira, trocava-se a placa e guiava-se a lança no fio elétrico alimentador do veículo para outra direção. O veículo ficava um bom tempo ali parado, executando essas operações, o suficiente para as pessoas do bonde decidirem se permaneciam ou se desciam naquele delicioso recanto. A missa diária da Igreja de N.S dos Remédios aumentava a animação. Ora, já estou me desviando dos patins, mas isso tudo faz parte da sedução da tal praça e demonstrava o porquê do ajuntamento de jovens por lá.
A Praça foi projetada pelo arquiteto Evandro Rocha e inaugurada, com a feição atual, nos anos trinta, na gestão do interventor Paulo Ramos. Contava pontos, mais que tudo, a qualidade do piso da praça, belo piso de cimento marmorizado com desenhos de arabescos. O piso era bem liso e a praça ampla. Isso facilitava a prática da patinação que, na época, não era bem um esporte, mas um modo de diversão e de reunir amigos. Houve várias outras ondas de patinadores em outras décadas, na mesma praça, inclusive com os novos patins modernos de rodas de poliuretano acoplado a botinhas de couro, mas nenhuma incorporou o charme e o romantismo deste Largo dos Amores como a moçada do pós-guerra, inaugurando um mundo novo.
Poucos jovens ainda patinam isoladamente em alguns lugares, preferencialmente na Avenida Litorânea. As novas pequenas rodas que dominam a juventude de São Luís não são mais as dos patins. Elas surgiram, fora do Brasil, a princípio, de uma minoria da classe média alta que descobriu o skateboard, invenção dos anos 1960, vinda da Califórnia. Novamente os EUA. Surfistas tiveram a ideia de acoplar rodinhas em pequenas pranchas. O sucesso foi imediato. O esporte começou, aqui, timidamente, nas classes mais favorecidas. No correr dos anos, com o barateamento das pequenas pranchas, até hoje, não tão baratas assim, foi se tornando moda. Embora existindo áreas específicas para o skate, na Lagoa, no Itapiracó, no Castelão, na Praça das Mercês, o ajuntamento de alguns permaneceu na Gonçalves Dias. A praça é charmosa, atraente, já se disse, mas inapropriada para esse tipo de esporte. Bancos, escadarias e adornos sofreram danos severos, com as manobras dos skatistas, indignando os frequentadores do logradouro.
Vieram as Olímpiadas de Tóquio e a vitória de uma fadinha maranhense, da cidade de Imperatriz, a mais jovem medalhista do Brasil, 13 anos, Rayssa Leal, conquistando uma medalha de prata no skate e, em seguida, tornando-se Campeã da Liga Mundial de Skate Street em Salt Lake City, mudou o comportamento de uma legião de jovens. A prática do skatismo tornou-se uma coisa a ser levada a sério, a fama ou uma profissão poderia chegar por meio deles. Santo milagre! Parece que os jovens esportistas da Praça Gonçalves Dias mudaram-se para os lugares apropriados, com pistas e obstáculos oficiais e, certamente, providos de orientadores. O que faz um bom exemplo! Quantos adolescentes são desviados diariamente do mundo do crime e da vadiagem pela prática do esporte. Temos exemplos aos milhares. As autoridades constituídas, municipais e estaduais têm, agora, uma ótima oportunidade, aproveitar e estar atentas a esse momento tão especial e proporcionar as condições para que a redenção de muitos adolescentes aconteça com o concurso dessas pequenas rodas.
Que as imagens de jovens voando sobre pequenas rodas tragam lembranças indeléveis a todos nós, iguais em beleza e afetividade humana às dos meus sonhos com os patinadores de outrora. “A hora é essa, meu irmão”, como diria aquele ceguinho que esmolava tocando corneta nas calçadas na Rua Grande.