Em 2021 a cidade de São Luís celebra 409 anos da chegada oficial dos europeus para a implantação de uma colônia de exploração e povoamento, a chamada França Equinocial, constituindo um marco embrionário na consolidação da futura cidade. Entretanto, a expansão europeia inaugura apenas um novo paradigma, trágico e cruel, das populações originárias, de diferentes matizes linguísticas e culturais, que já se encontravam plenamente adaptadas na região.


As marcas e vestígios materiais dessas sociedades, com o modo de vida tão diferenciado dos europeus, ficaram documentadas no registro arqueológico, onde o subsolo guarda frágeis evidências do passado de 200 gerações que o processo de colonização tenta silenciar como uma história invisível de menor importância.
O cenário dessa multifacetada epopeia é a ilha de São Luís e seu entorno continental, que na visão dos primeiros cronistas e colonizadores, possuía uma natureza exuberante com densas florestas, fauna variada, abundância de águas e um clima agradável, mesmo estando localizada logo abaixo do equador. Essas peculiaridades possibilitaram que populações muito antigas transitassem e se fixassem em locais de fácil acesso, ricos em recursos alimentares, e assim estabelecessem hábitos de vida por meio de estratégias culturais próprias.
Os habitantes mais recuados no tempo que a pesquisa arqueológica estabeleceu até o presente foram as sociedades de caçadores-coletores e pescadores. Grupos que exploravam densamente os recursos dos manguezais, estuários, restingas, áreas costeiras marítimas e seus sistemas hídricos associados. Entretanto, apenas o aumento de investigações acadêmicas ou vinculadas a licenciamentos ambientais, e o desenvolvimento de programas de pesquisas mais consistentes, poderão identificar a existência de acampamentos de populações ainda mais antigas.
Os sambaquis são sítios caracterizados pela presença maciça de restos alimentares formando montículos que se destacam na paisagem. Associados às carapaças de mariscos e restos de peixes e caça, são observados vestígios de produção material como instrumentos, lascas, machados de pedra, lâminas escuras de fogueiras e enterramentos humanos muito bem preservados em função da calcificação dos ossos. Os sambaquis do Maranhão foram explorados desde o inicio da colonização, onde as conchas eram utilizadas para fabricação de cal, e apresentam um traço cultural diferenciado: a ocorrência de cerâmica. A datação mais antiga até o momento situa o sambaqui do Bacanga em 6.000 anos aproximadamente, cujo acervo se encontra sob a tutela do Ecomuseu Sítio do Físico. Temos ainda a presença de sociedades que moravam em aldeias com grandes casas comunais e que viviam da caça, pesca e agricultura, no interior da ilha. Eram fabricantes de cerâmicas e exímios fazedores de machados de pedra polida.
A partir do ano 1000 da era cristã acontece a expansão de levas dos povos Tupiguarani, originários do sul amazônico. Existem diversas hipóteses sobre as rotas de migração desses grupos, entretanto, sabe-se a partir da datação de um achado no Alto do Calhau, que 250 anos antes da chegada de Cabral, já existiam grupos de origem Tupi na Ilha de São Luís. No referido conjunto, três vasilhas apresentavam bordas vermelhas reforçadas, decoradas internamente em preto sobre fundo branco, com motivos de elaboração complexa e diferenciada. Em função da delicada pintura e de outros recipientes, a hipótese mais provável é de que se trata de uma cerâmica usada ritualisticamente nos sepultamentos. As características morfológicas e decorativas das peças remetem a tradição Tupiguarani, tradicionalmente descritas na literatura arqueológica. Este achado se encontra exposto na exposição setorial de Arqueologia no Centro de Pesquisa de História Natural e Arqueologia do Maranhão (SECMA), órgão que há 20 anos desenvolve pesquisas e divulgação do patrimônio arqueológico junto à comunidade.
A instalação dos franceses, no entanto, marca o inicio da transição desse modo de vida de tradição milenar para padrões ocidentais mediterrâneos. A experiencia francesa foi descrita por dois cronistas religiosos, Claude d’Abbeville e Yves d’Evreux, e por algumas correspondências privadas que descrevem os nativos e o cotidiano da breve colônia. Apesar da inevitável narrativa eurocêntrica, trazem contribuições de caráter etnográfico e do modo de vida dos nativos habitantes da ilha. Em correspondência, datada de 16 de dezembro de 1612, o Sr. Louis de Pezieu descreve: “As pessoas são todas naturalmente muito dóceis e, desde que se não as pressione, escutam e são tão interessadas em conhecer acerca do que nada sabem. Todavia, detestam ser contrariadas, são muito violentas e cultivam diversos maus costumes sugeridos pelo diabo; costumes que prometem abandonar, incluindo aquele de comer seus inimigos – o que fazem muito mais para exercer uma cruel vingança contra esses do que por apuro do gosto.”
Com a batalha de Guaxenduba (1615), portugueses e “brasileiros” expulsaram os franceses da ilha, estabelecendo novas estratégias políticas de dominação e expansão em direção ao Amazonas. Adotaram as diretrizes urbanísticas do planejamento da cidade de acordo com as instruções do engenheiro Frias de Mesquita, com a implantação de um traçado ortogonal dos arruamentos que direcionou a expansão da cidade, sendo um dos primeiros desenhos planificados do continente americano.
Nos dois séculos seguintes a cidade evoluiu lentamente, como é possível observar nas plantas desenhadas por Frans Post durante a ocupação holandesa. O comércio agro exportador, com a transferência forçada de milhares de africanos, foi incrementado através do movimentado porto da cidade, que também trouxe hábitos de consumo de bens de uma elite que adotou padrões de urbanidade europeu adaptados ao equador. São Luís possuiu diversas casas importadoras e exportadoras inglesas e, desde meados do século XVIII, teve uma renovação urbana com a adoção de padrões construtivos típicos da era pombalina.
Com o seu acervo arquitetônico de grande valor protegido através das legislações estaduais e federais, diversos programas de revitalização de grande impacto vêm ocorrendo desde então, embora muito pouco foi feito pela prática arqueológica em ambiente urbano. Destaque para os Trabalhos da casa da França, Fábrica Santa Amélia, e ruínas do sabão Martins, dentre ouros. A cidade ainda apresenta um grande potencial de pesquisa das memórias guardadas no sobsolo das ruas, casas, becos e quintais, que precisa ser olhado com mais sensibilidade pelos gestores, investidores e militantes das causas patrimoniais.
Em outras regiões da ilha, o potencial também é parcialmente conhecido, e apesar da legislação de licenciamento e proteção ao longo dos anos, muitos sítios tem sido destruídos, como no caso dos sítios Maiobinha e Pindai, descritos por Raimundo Lopes em 1920, e impactados e reocupados pela expansão urbana.
Em 2020 foi realizada uma pesquisa associada ao licenciamento para implantação de um condomínio na Chacára Rosana, nas imediações do Turu, pelos arqueólogos Conceição e Wellington Lage. O sitio já era conhecido desde 1970 pelo trabalho do professor Olavo Correia Lima. No setor sul, foi observado uma maior concentração de restos cerâmicos, líticos e faunísticos, achados que somaram mais de 60 mil fragmentos, além de dois importantes enterramentos em posição fetal que foram devidamente consolidados e resgatados.
A pesquisa arqueológica, portanto, transcende a materialidade visando entender as redes de relações sociais, econômicas e simbólicas associadas aos artefatos, estruturas, objetos e monumentos originários dos povos do passado. Os sítios arqueológicos existentes em solo brasileiro são protegidos por lei federal desde 1961. Contudo, a realidade da expansão urbana desordenada, exploração de recursos naturais e os impactos decorrentes nesses recursos tão frágeis e não renováveis, tornam o trabalho uma constante luta contra o tempo, uma vez que violados de forma indevida, os artefatos perdem de maneira contundente o seu potencial informativo.
Deusdédit Carneiro Leite Filho
Arqueólogo, diretor do CPHNAMA
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