Partiu de súbito, no último dia 30/03, arrastado pela crueldade impessoal da covid-19 o extraordinário poeta, pai, professor, amigo Carvalho Junior, 35 anos. E “extraordinário” aqui não é um lugar comum, mas um termo justo para esse grande ser humano que, conforme escrevi em texto para seu último livro, Xilogravura de Pássaros, que ficou inédito, era pleno de uma “consciência afetiva” extremamente espontânea, e de uma enorme generosidade para prover o florescimento de uma comunidade poética, de levar outros juntos consigo, na alegria das realizações das quais ele se tornou referência. Inquietação e semente no coração da poesia brasileira.
Do escritor José Neres, seu muitas vezes anfitrião em São Luís do Maranhão, cidade que também amava, esta síntese: “Uma grande perda para a família, para os amigos e para a literatura. Carvalho,além de um ser humano incrível, era um Escritor de grande dicção poética e muito domínio da palavra”.
E para o também acadêmico e escritor José Ewerton Neto: “[É] uma tristeza imensa! Além de grande poeta, marcante através do originalíssimo O homem-tijubina, era um ser humano admirável, um artista acima das vaidades que cercam o meio literário, muitas vezes. Esquecia de sua própria arte para divulgar novos poetas e
grandes talentos, relegados ao ostracismo.
Uma perda irreparável”. Isso para mostrar o mínimo da dimensão do impacto de Carvalho Júnior nas nossas letras e nas pessoas que o conheciam, e, mais ainda, o impacto da sua partida tão absurda – sem sequer podermos dimensionar o impacto disso para a esposa e as duas filhas ainda garotas, que deixa.
Carvalho já vinha conquistando vários prêmios em poesia, como do Festival de Poesia Falada da UEMA e o último, em 2020, o Prêmio Gonçalves Dias, promovido pela AMEI-Associação Maranhense de Escritores, com o
poema “O Intamanhável”. Entre suas obras mais importantes, estão Dança dos dísticos (2014), No alto da ladeira de pedra (2017), O homem-tijubina (2017), e o inédito Xilogravura de pássaros. Ele também, além da imersão ativa, engajada e participativa em vários grupos, era membro da Academia Caxiense de Letras.
Em sua homenagem, faremos esta série de publicações em nome do JP GUESA ERRANTE, neste espaço muito gentilmente cedido pelo JP TURISMO. Neste primeiro número, publicaremos alguns poemas e textos, dentre os
inúmeros escritos em sua tenção por tantos e tantos poetAmigos, poetas-irmãos, como ele gostavazde chamar os mais chegados, isto é, praticamente todos que tocavam o seu coração, porque ele toca o coração de todos.
Viva você, Poeta!
Antonio Aílton
XILOGRAVURA DO POUSO Ao irmão-amigo Carvalho Júnior e suas filhinhas
NO RELEVO INDIGNO DA MINHA LÁPIDE
se eu tenho um chão
desses para os quais se inventam
hinos e outras pompas de maldizer,
fica abaixo da cintura de uma flor de cemitério
dos entrenós feridos
em que as borboletas acrobatas se distraem
nas manhãs de visita aos mortos desconhecidos.
quando a caçula da família destroça a cabeça
do último bailarino sem sombra
e rasga com vidro sujo de sangue
o corpo sem tinta da flor,
lê no relevo indigno da minha lápide:
nunca nasceu tal como a sua pátria.
Francisco de Assis Carvalho da Silva Junior
(04/10/1985 – 30/03/2021)
Livro: No alto da Ladeira de Pedra, Patuá, 2017.
Bendita seja a poesia que nos dá vida
e pela qual me emprestas a tua voz
de árvore de calango de pássaro
Um poeta não morre – mas apenas
porque a vida é maior que a poesia
Mulher ou homem, ninguém deve partir
porque não se medem, nem a vida nem
esta
que é bem menor do que uma árvore
do que um pássaro
um moleque-tijubina
e muito, muito menor ainda
que o meigo riso de nossas filhas
A poesia te leva além de ti, dos tempos
mas não te devolve completo aos teus
porque tu és maior que a poesia
A poesia só se iguala à vida
nas lembranças onde pousas
e onde um dia pousarão todos os pássaros
Antonio Aílton, 30-31/03/2021
BILHETE A FRANCISCO CARVALHO JUNIOR
(em memória do nosso irmão que partiu hoje)
Repara, meu irmão, como andam claras
estas manhãs de março, e esses navios
que ancoram seu pavor na nossa cara
e injetam em nossos ossos falta e frio.
Tanta coisa no mundo nos separa
do que é maior em nós, corta o pavio
do nosso estar aqui, e empurra para
ir garimpar estrumes de vazio.
E agora resta um mar por cavalgarmos.
E os risos cada vez são mais amargos
e até chorar nos custa um céu de rastros.
Nenhum luar. Nenhum. Nenhuma fresta.
O sol agora é um grumo que nos cresta.
Os que ficamos vamos nos teus passos.
Viriato Gaspar
30/03/2021
NO PEITO DE UM POETA
Em memória de Carvalho Junior
No peito de um Carvalho tudo cabia:
a palavra, o lagarto, o pássaro,
o silêncio, o voo, o amor,
a poesia…
Nos passos do homem-tijubina
O caminho, os sucos do babaçu,
a cabaça e o afeto
(as gamelas de amor)
O homem-tijubina
e sua “reza inaudível”
à beira do rio.
O homem-lagarto
plantando poesia
pelas ruas de Caxias.
O menino-tijubina se encantou.
Se eternizou na fala das palmeiras;
nas corredeiras dos rios;
“na pele aberta dos dias”
No peito do Carvalho tudo coube.
Quem dera, meu Deus,
quem dera, que com as aves
(que por lá gorjeiam)
ele revoasse para cá.
Luiza Cantanhêde
LENDA
a Carvalho Junior
onde o chão
onde o grão
o sim o não
a luta o luto
a dor a dor
a vida a lenda
um carvalho de poesia
FUTURO
para Carvalho Junior
Quando falo das minhas décadas,
da solidão das décadas,
um espelho se abre no chão:
é como se eu voltasse ao útero,
raro, vazio
e a vida inteira escapasse
como a cigana que me escondeu as cartas da infância.
Clarissa Macedo
PARÁBOLA DA ETERNIDADE
à sombra da árvore
inauguramos o tempo
do corpo sem corpo
os braços que crescem ao redor
não são de carne
ou matéria equivalente
no reino plantae
são constituídos de saudade
pura ou batizada com um verso
ou outro um gole ou outro
um sorriso um choro
à sombra da árvore
nos sentimos como um menino
que inventou palavras
para contar a história
da lagartixa que virou gente
ou talvez tenha sido o contrário
Adriana Gama de Araújo
CARVALHO TOMBOU PARA O ALTO…
EDMÍLSON SANCHES
“Cultuo a vida”
(Carvalho Junior)
Enquanto Carvalho Junior lutava pela sobrevivência, eu ficava pensando no que pensavam suas duas maiores obras – as filhas – e a esposa, Joseneyde. Sem querer, mas sem controlar, me lembrava de minha mãe doente, entubada, e de como seríamos nós seus filhos sem ela, a grande mãe, a grande fieira, o grande cambo que nos unia a todos. (Aliás, a palavra “Cambo” é título de um livro que estou escrevendo e Carvalho Junior por “n” vezes me dizia do quanto gostava desse título e brincava: “ – Se você não escrever esse livro, escrevo um com esse nome…”.
Não há como esquecer as conversas ao telefone por horas e horas seguidas, o sem-número de áudios e as mensagens, as dúvidas e perguntas que me fazia o Carvalho Junior sobre algum aspecto da Língua Portuguesa, da Literatura e da História caxiense.
A gente fica pensando no quanto de orações, “energias”, mensagens, poemas, imagens foram feitos, enviados, trocados, todos torcendo pela recuperação do grande jovem poeta. Nas solenidades — controladas, desaglomeradas… – dos dez anos da Academia Sertaneja de Letras, Educação e Artes do Maranhão, a Asleama, de 15 a 19 de março deste 2021, quantas vezes antes e/ou depois de pronunciamentos eu e outros colegas acadêmicos nos manifestamos com uma fala sobre o Carvalho Junior e pedidos e endereçamentos de minutos de silêncio e contrição, energia e oração em prol do Carvalho…
Em janeiro último, Carvalho Junior, Ezíquio Barros Neto e eu vencemos a tarde e a noite em uma mesa frente ao Excelsior Hotel, em Caxias (neste momento estou em Fortaleza – CE), e, entre goles de um líquido ouro, partilhamos sonhos áureos para Caxias, para o futuro da cidade, para um possível reconhecimento da grandeza de seus valores de ontem e de agora… (Aliás, era nesse Hotel, mas, também frequentemente, no menor bar do mundo, o Fiapu, do amigo Paulo Sérgio Assunção, praticamente em frente à Igreja Matriz, que Carvalho, Ezíquio e eu nos reuníamos, “lavando o peritônio” e remoçando sonhos que poderiam envelhecer de tão sonhados que são…).
Jovem, 35 anos, não fumante, forte… Nós, que não sabemos nada, nos perguntamos: Como pode ter ido o Carvalho Junior, assim? 30 de março de 2021…
Caxias, o Maranhão e o Brasil não só perdem o Carvalho professor, gestor escolar, ativista cultural, sonhador por uma Caxias melhor – perde também provavelmente seu mais consistente e promissor poeta das últimas décadas. Ele me falava de um novo livro em preparo, além de outros já prontos, inclusive um livro infantil, para o qual me pediu um prefácio, em versos.
Joseneyde e as meninas não deixarão que essas obras se enterrem com seu Autor. Ante tantos dias de luto, dor, tristeza, saudade, publicar os inéditos de Carvalho Junior é uma forma de o escritor ressuscitar em palavras e dar-lhe a parição de mais filhos – de celulose e tinta, que também cuidarão de eternizar o pai-Autor.
Não é fácil desviver… Aliás, nós, os Morituros, de verdade nem intuímos isso de verdade. Parece que o fato de se estar vivo provoca a ilusão de que se seja eterno em carne e osso. Mas – já o disse – não somos eternos; somos apenas enfermos — enfermos de vida.
Carvalho Junior foi à frente, para desvendar o maior dos mistérios poéticos – a Criação (“poesia”, em grego).
Carvalho resistiu o quanto pôde.
E quando tombou, tombou para o Alto.
Descansa, Grande Poeta.
EDMÍLSON SANCHES, escritor, jornalista.
OS OLHOS CARREGAM A CHAVE DO POEMA
À memória de Carvalho Júnior
recebo no celular
uma foto do poeta
entre vidro e flores.
os olhos carregam a chave
do poema.
as mãos agarram-se
nos pássaros,
nas pedras,
no mato.
o pai segura a alça do caixão;
limpa a lágrima com a manga
da camisa.
olha para o céu
e resolve continuar a prece
(para Deus)
o sol esconde a manhã,
um silêncio na procissão
parece a primeira vez.
Paulo Rodrigues
LAMENTO DE DESPEDIDA
[A Carvalho Junior, in memoriam]
os céus são cegos em seus desígnios
de repente disparam seus raios de fúria
sobre os ombros da palmeira mais bela
ou do carvalho que abrigava uma aldeia
como o calando apartado do corpo
na contorção do desmantelo imerecido
fica sua voz sem despedida dando cipoadas
sobre as quinas desse silêncio sem gamela
não sabemos calar essa dor fora do poema
ausência é coisa que nos rói tendões e ossos
carrapato que suga a seiva da esperança
pedra que abate o pássaro das utopias
entre nuvens e correntezas o poeta rompe
os limites da vida para vestir o avesso dela
o menino-tijubina trocou as pernas por asas
deixando-nos presos na arapuca da saudade
Neurivan Sousa
JORRO
catarata é quando
o rio toma banho
na criança-acrobacia
Carvalho Junior
Xilogravura de pássaros
POEMA DO LADO DAQUI
(Para o poeta-irmão Francisco
Carvalho Júnior – in memoriam)
francisco
– nunca o chamei assim –
nem sei quantos nomes há dentro do teu
nem como te chama o grande poema-deus
daqui
vejo flores abertas de outras datas
o singrar de canoas ao léu
e a névoa nos olhos das tijubina
que são landes de teus arbustos
aqui
há braços que não chegam
mãos que não tocam a f(l)auta
do índio quirola
e uma cumbuca de lágrimas
porque somos desta substância
de barro e pó.
aqui fica, irmão
tua poesia
– pássaro pousado no nariz de tuas filhas –
fica aqui tua tribo, tua herança
nosso sarau adiado
e essa urgente esperança de renascer
da casca ou da sombra dos carvalhos.
Samara Volpony
Edição: Gutemberg Bogéa