A esperança, por menor que fosse, valia a luta — Com a experiência do bom combate, o Clube de Jovens da Madre de Deus não era de esmorecer, tendo a esperança, a menor que fosse, de dar conta do recado comunitário mesmo contra o vento e a correnteza dos dias nebulosos que o Brasil vivia. Não era um tempo favorável para a exposição de idealismo, pois o regime de chumbo estava vendo fantasma da subversão em qualquer esboço de contestação, quando acionava sua arma mais potente e letal: a repressão implacável e indiscriminada, e, por aí afora, não escapavam sequer os da “esquerda festiva”, aqui, por extensão, que seriam pelegos da causa democrática, inclusive dedurando os tachados subversivos, sob a mínima suspeita, sendo bem-gratificados em suas ambições políticas e altos cargos, com o recibo sendo passado sem demora, diziam à boca pequena.
Viva a Democracia! Abaixo a Ditadura! — Com a vigência do AI-5 (Ato Institucional n.º 5), o mais repressivo e sangrento dos editados pela mordaça ditatorial, a 13 de dezembro de 1968, na noite do dia seguinte, ousamos fazer coro de protesto, numa manifestação de todos os Clubes de Jovens de São Luís, no Teatro da Igreja de São Pantaleão, onde, no alto do palco, lia-se VIVA A DEMOCRACIA! ABAIXO A DITADURA! Foram citados, já presos, anos antes, no quartel do 24.º Batalhão de Caçadores (24.º BC), no Bairro do João Paulo, dentre outros, os médicos e comunistas convictos Maria Aragão e William Moreira Lima, e Bandeira Tribuzi (jornalista e poeta do Jornal O Dia) e Vera Cruz Marques (sindicalista e jornalista do Jornal O Dia), e que agentes do Exército vasculhavam focos de subversão, na Capital e no Interior.
Com o Paulo Freire de Alfabetização — Autor da Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da Libertação, o Educador Paulo Freire, perseguido e exilado pelo autoritarismo, com outras cabeças dentre as mais brilhantes do País, deixou o seu legado de Inteligência e desprendimento à nossa disposição juvenil para a coletividade: Sua técnica de ensino, aproveitando o ambiente vivido pelos desemburrados para a formação das palavras usuais em seu cotidiano, era ligeira e eficiente na facilitação do milagre da escrita e da leitura, e estimulava a continuação dos estudos aos concludentes. Foi uma antecipação de quase dois anos ao Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), que, frio e seco, não tinha interesse na conscientização política de quem desasnava. Técnicos cearenses ligados à Igreja, por reivindicação do Clube de Jovens Católicos de São Pantaleão (com José Antônio Broer-Alemão, ali assessor do jornalista e advogado Carlos Nina, ligado à Arquidiocese) vieram a São Luís treinar monitores, com que nós, do Clube de Jovens da Madre de Deus, recebemos a capacitação do Método Paulo Freire de Alfabetização, na Capela de São Pedro.
Luzes no Beco do Maruim e na Tabatinga — Conscientes do risco que corríamos, perto da areia movediça da politiquice e delação, sob o clima de tensão reinante, sem sinal de acabar tão cedo, em janeiro de 1969, ministramos o Revolucionário Método Educador Paulo Freire de Alfabetização, em duas salas de aula noturnas: no Beco do Maruim, assim sabido um marujo aposentado, do qual era a casa na frente, na Ladeira da Rua de São Pantaleão, na Madre de Deus (com Lúcia Bulcão da Silva — formanda da Escola Normal e que era namorada de Raimundo Teodoro de Carvalho-Raimundinho, casados depois, ambos médicos) e eu; e, na Tabatinga, com Raimundinho e Léia Sousa Pimenta, professora e acadêmica de Economia da UFMA, amiga, aliás, por excelência.
Os moços desprendidos do bem comum — Os que fizeram o Clube de Jovens da Madre de Deus foram todos importantes para o êxito sociocultural comunitário, por ordem alfabética: Cléa Sousa Pimenta, Herbert de Jesus Santos (Betinho), João Batista Ferreira Garcia (Sombra), Léia Sousa Pimenta, Lúcia Bulcão da Silva, Maria Cecília Bulcão da Silva (Zoca), Maria da Conceição Bernardes (Concita), Maria da Graça Ferreira (Gracinha), Maria do Socorro Costa, Olivar Batista Araújo (Vavá), Onésimo Espósito, Raimundo João Silva Araújo, Raimundo Teodoro de Carvalho (Raimundinho), Sandoval Assunção Barros, Valdivino Garcia (Cháu) e Zeno José Araújo. Ali, convidei Gracinha Ferreira para ser minha madrinha de conclusão do Curso Científico do Liceu, em dezembro de 1968, com a festa dançante no Clube Sírio-Libanês, na Rua Celso Magalhães, sob animação de Nonato e seu Conjunto. Os Incentivadores mais continuados de promoções do nosso Clube de Jovens: Carlos Oliveiros Sousa Pimenta (Oliveira), Clotilde Almeida (Coló), Lina Rosa Rodrigues Corrêa, Lúcia Fernandes, e Luís Carlos Aroucha (Arouchinha), e Simão Cireneu Ramos.
A Confraria que me forjou para o bom combate — Nessa ocasião, no Científico do Liceu matutino, eu residia com Meus Padrinhos e Pais de Criação (o oficial de Justiça Francisco Galvão dos Santos-Chiquito e a dona de casa Aldenora Ferreira Galvão-Dedé), na Rua do Apicum, mas, no início de 1968, fui participar do Clube de Jovens da Madre de Deus. Na minha casa paterna, lecionava Português e Matemática para candidatos ao Exame de Admissão a colégios secundários estaduais (Liceu e Escola Normal) e de Aprendizes de Marinheiro, em que ia aprimorando meu cabedal para concursos vestibular e serviço público.
Uma roda-viva afiada – Seguia assim a minha roda-viva, no sentido de grande afã ou corre-corre, no começo de 1968: dormia na Madre de Deus, tomava café na Rua do Apicum, ia estudar no Liceu, almoçava na Rua do Apicum, ensinava a minha classe, numa sala improvisada, na casa paterna, repassava os pontos aprendidos no Liceu, jogava bola na c´roa entre o calçadão da fábrica de óleo de coco babaçu Lázaro Ducanges e a beira do Rio Bacanga, e, de noite, no Clube de Jovens, em dias de reunião e baile de radiola, no apogeu da Jovem Guarda.
O incêndio nas palafitas do Goiabal – Quando aconteceu o incêndio no Goiabal, no calamitoso 14 de outubro de 1968, havia terminado a nossa pelada, o que ocorria por dois fatores: Ou maré enchente, a qualquer hora, ou noite profunda, nunca pela falta de disposição dos jogadores para ganhar, nos chamados “desafiados”, quando os times derrotados “ficavam na barreira”, isto é, esperando outra vez, e os vencedores permaneciam “desafiando” outros adversários, até que perdessem a partida. Eu me achava tomando banho num poço que havia na frente da casa de D. Maria Roxinha e do pescador Deodato (Seu Duca), colega de profissão e amigo dileto do Meu Pai (Filipão), na hora da ave-maria, tocada, então, nas rádios, quando A Voz Santo Antônio, amplificadora de propriedade do prezado líder comunitário Dico Barata, anunciou o começo da tragédia, por intermédio do jovem locutor Marcelo Rodrigues, que faria uma carreira bem-sucedida na radiodifusão da cidade de Imperatriz(MA).
A barriga no desencontro das informações – A noite havia estendido o seu manto, não dava para ver, com exatidão, a extensão da destruição dos barracos e das vidas humanas. As informações fornecidas por populares eram desencontradas, o nervosismo e o pânico impuseram-se estampados no rosto dos martirizados e conhecidos, não seria possível alguém prestar esclarecimentos conclusivos e com riqueza de detalhes, daí os desacertos nos veículos de comunicação que mais se afobaram em dar o furo de reportagem. O Imparcial foi um dos que cometeram, no jargão jornalístico, a barriga, ou a notícia reconhecida depois como falsa, pelo menos, não sendo autêntica, em toda sua plenitude, pelo número de mortos e de palhoças reduzidas a cinzas ser muito abaixo do divulgado, inicialmente, mesmo com o texto evidenciando a reserva da especulação. No dia 15 de outubro amanheceu, nas bancas, abrindo a seguinte manchete: MUITA GENTE PODE SER ENCONTRADA MORTA SOB AS CINZAS DO INCÊNDIO DO GOIABAL.
“Violento incêndio que teve início às 18 horas de ontem (segunda-feira, 14 de outubro de 1968) destruiu aproximadamente trezentas casas e calcula-se que haja vítimas superior a duas centenas, tendo em vista a grande aflição de pais à procura de seus filhos. Na tentativa de escapar das chamas, as pessoas jogavam-se ao mar, crianças eram pisadas pela multidão, ouviam-se gritos, choro, correria, era um grande alvoroço! Dor e sofrimento! A cena realmente era muito triste, não só por terem perdido suas casas, mas pelo temor de terem perdido seus filhos e parentes.”
(Na edição seguinte, O Imparcial daria a versão verdadeira, nos mínimos detalhes).