Desde sua fundação, em 1612, a produção literária de São Luís tem refletido as experiências, as expectativas e os sentimentos de uma parcela de seus habitantes, sobretudo dos políticos e daqueles que compõem o campo mais elitizado de sua área cultural. A chamada Athenas Maranhense ou, melhor ainda, a Athenas Brasileira foi a denominação criada para descrever uma suposta relação simbólica havida entre o movimento literário que floresceu na cidade nos séculos XVIII e XIX, e a referência à Grécia Antiga, sobretudo, à sua principal cidade, Athenas, tida por muitos como o berço da cultura ocidental, de onde provém o fundamento da referida denominação.


Da mesma forma que Athenas foi considerada a cidade dos poetas, dos artistas, dos filósofos e tantas outras figuras exponenciais do que de melhor pôde produzir a Grécia da antiguidade, São Luís tem sido reconhecida como a terra onde a língua portuguesa teve um papel relevante na vida cultural da população.
Os primeiros anos da história literária da capital do estado do Maranhão foram marcados pela presença do Barroco, estilo florido e ornamental em voga no Brasil durante o século XVII. Nessa época, tal produção era dominada pelos jesuítas, que a utilizavam como meio difusor dos ideais católicos junto aos nativos e colonizadores. É importante lembrar, nesse sentido, o mais famosos desses mestres jesuítas para o Maranhão, o Pe. Antonio Vieira, que aqui esteve entre 1653 e 1651, denominado por Fernando Pessoa nos poemas de Mensagem como “O imperador da língua portuguesa”, e cuja imagem solidifica tanto o aspecto do exímio uso da língua quanto o aspecto da própria excelência literária.


Com o fim do período colonial e a independência do Brasil, em 1822, as vozes literárias se expandiram para além dos dogmas da fé professada pela Igreja Católica. Novos talentos surgiram nas décadas seguintes, trazendo, com isso, mudanças de perspectiva para as nossas letras. Dentre os poetas mais importantes do período encontra-se Gonçalves Dias, autor do famoso poema “Canção do exílio”. Um dos primeiros poetas brasileiros a escrever em verso rimado, tornou-se um nome de vulto nacional, angariando destaque na poesia romântica brasileira, tendo sua obra influenciado profundamente toda a poesia posterior.
A concepção da identidade citadina ludovicense como Atenas brasileira teve início no final do século XVIII e atingiu seu apogeu no século XIX. Esse período corresponde às Primeiras Luzes ou Iluminismo – movimento intelectual europeu que defendia o uso da razão nas questões sociais e políticas –, bem como às Revoluções Liberais que abalaram toda a Europa entre os anos de 1848 e 1849. No Brasil Imperial, o plano desses acontecimentos deu origem à Confederação do Equador – tentativa frustrada de instauração de uma república liberal federalista em nosso país.


A janela é clara
no que nos revela,
e a verdade para
por se ver já nela.
[…]
Aqui no mirante
o tempo nos diz
que há um sonho errante
sobre São Luís
(José Chagas. Os canhões do silêncio, 2002 [1ª. edição: 1979])
No contexto tumultuoso dessas grandes transformações sociais e políticas na Europa Ocidental, muitos escritores, dentre eles os maranhenses, começaram a questionar as relações de poder estabelecidas na sociedade brasileira escravocrata. Tais artistas buscaram, portanto, inspiração nos ideais libertários do Iluminismo europeu para, com eles, fundamentar suas críticas à opressão social decorrente do sistema escravista vigente no Brasil.
Como já nos mostrou Rafael Serra Resende (2007), com a presença de muitos literatos maranhenses, sobretudo de São Luís, no cenário da literatura brasileira, tornou-se possível a construção da categoria conceitual de “Atenas brasileira”. Para isso, muito contribuíram não só Gonçalves Dias, Odorico Mendes e João Lisboa, como outros membros do movimento romântico ligados ao Maranhão, tendo a historiografia fixado a obra “Pantheon maranhense: ensaios biographicos dos maranhenses illustres já fallecidos”, publicada no ano de 1873 pelo Dr. Antonio Henriques Leal, como a referência simbólica do movimento de construção de uma identidade diferenciada para a capital do nosso estado.
Ainda segundo o mesmo autor, a referida categoria sempre esteve associada ao grupo da elite letrada da nossa cidade, verdadeiros responsáveis pela existência desse cognome, ficando o restante da população alijada da percepção e vinculação desse conceito ao âmbito simbólico daquilo que supostamente deveria representar para os habitantes da província.
Sobre a criação do mito ateniense, e do seu efeito simbólico, convém ressaltar que ele decorre também do contexto socioeconômico de um período de crescimento regional, graças à agroexportação, numa quadra histórica onde, na pós-Balaiada, houve um acréscimo de acesso aos bens culturais e materiais estrangeiros por parte de alguns estratos da sociedade local, tendo início então, como aponta José Henrique de Paula Borralho (2013) ‘um projeto de formação de uma cultura oficial que desse visibilidade ao Maranhão perante as demais províncias’. Tal projeto, do qual adviria o famoso aticismo e a referencialidade eurocêntrica da analogia Athenas – São Luís, fez com que se consolidasse no imaginário popular, sobretudo das gerações posteriores, a ideia de um Maranhão importante para o país, tendo em vista a contribuição especial que era dada pela participação decisiva de seus maiores literatos na formação da identidade nacional.
Para além de qualquer crítica que possamos firmar em torno do famoso cognome, e da legitimidade ou não de sua existência, é importante frisar que havia, como ainda há, um colossal abismo entre a autodenominação ateniense e a crua realidade de pobreza, inclusive intelectual, de uma fatia consideravelmente grande de cidadãos maranhenses até hoje. Razão pela qual, em que pese a consabida grandeza de nossa história literária, com a farta lista de intelectuais que estas terras legaram à cultura nacional, é preciso reinventar a invenção, ressignificar o mito, cambiá-lo ou mesmo desmistificá-lo, trazendo-o para o patamar de facticidade que as questões circunstanciais deste século impõem.
Assim, enquanto existe a possibilidade de, por um lado, valorizarmos conquistas e ganhos culturais, como todo lugar precisa afirmar os seus e sua memória, por outro lado, é tempo também de assumirmos a multiculturalidade como o grande contributo por detrás de tudo o que cerca a construção discursiva do suposto diferencial de São Luís, ou mesmo do Maranhão (provincial), em relação ao Brasil, nomeadamente no que tange à conformação de sua real identidade.
É, portanto, o diverso e o múltiplo, em tudo o que nos funda e nos propõe enquanto povo, enquanto tipos, enquanto gente, nossa marca mais visível, e o mito que devemos verdadeiramente cultivar. Afinal, se um dia fomos a Athenas Brasileira, a Manchester do Norte, a Cidade dos Azulejos – que rui, por falta de visão e consciência politica, econômica e identitária –, a Ilha do Amor ou a Jamaica Brasileira, como bem lembra Conceição de Maria Belfort de Carvalho (2009), hoje somos diversos, em simultâneas identidades. Logo, não somos Athenas. Somos isso e muito mais ao mesmo tempo.
“Viriato Corrêa, Humberto de Campos, Benedito Leite, Graça Aranha, Arthur Azevedo, Aluísio Azevedo, Raimundo Corrêa, Coelho Neto, Celso Magalhães, SousÂndrade, Antonio Henriques Leal, César Augusto Marques, Lisboa Serra, Pedro Nunes Leal, Belarmino de Matos, Gentil Homem d’Almeida Braga, Antônio Joaquim Francisco de Sá, Francisco Dias Carneiro, Joaquim Serra, Trajano Galvão, Cândido Mendes, Gomes de Sousa, João Francisco Lisboa, Gonçalves Dias, Sotero dos Reis, Odorico Mendes. O que liga todos esses nomes? […] Quem eram?…
[…]
Entre tantos motivos e leitmotivs, para assegurar a ideia de diferenciação social, foi o lugar de nascimento, adoção, espaço congregação dos literatos arrolados no início deste capítulo, que viu nascer, no século XIX, o epíteto, o projeto “Athenas Brasileira”. Este lugar é o Maranhão, mas poder-se-ia chamá-lo impunemente de São Luís mesmo, já que, ao longo da sua história, Maranhão se restringiu à sua capital.”
(BORRALHO, José Henrique de Paula. Uma Athenas Equinocial: A literatura e a fundação de um Maranhão no Império brasileiro”. São Luís, EdFunc, 2010. [p. 33 e 38])
Texto: Rogério Rocha e Antonio Aílton