Fecho os olhos e vejo o sobrado do velho Maia a esticar-se senhorial na República dos Apicuns, sentinela silente das minhas peraltices de menino e testemunho vivo dos meus sonhos da juventude; este Sobrado povoa-me intermitentemente de boas e antigas lembranças, quando por ele tenho de passar-lhe à margem ou de repassar-lhe os umbrais, a cumprir meu imaginário em rumo das muitas histórias das Ingazeiras, sempre seguro às mãos de Marcel Proust, que me ensinou, quando li os Caminhos de Swann, que a descoberta do tempo se faz através da memória… E é assim que eu tento reconquistar, como ele, o tempo perdido. O proprietário desse saudoso e velho Sobrado, era o senhor Manoel Maia, um português de Trás-os-Montes que, depois de viúvo, casou-se novamente e foi pai de Frutuoso, o último território humano do simpático lusitano, que por sua vez também era pai de uma renca de filhos, dos quais Maria Rosa, sem ser a primogênita, era por seu temperamento de regateira alfacinha, uma mulher dinâmica e sem papas na língua, por isso eleita pelos condôminos como síndica do Sobrado, esse aconchego de trabalhadores esperançosos; e, pelos de seus, parentes e aderentes, como matriarca, já que sua mãe falecera há muito, confirmando dessa forma, a tese exposta em Sobrados e Mocambos, de Gilberto Freyre, que trata justamente da derrocada do paternalismo brasileiro desde dos fins do século XIX; Rosa, chamada assim pelos íntimos, era casada com Nathanael Sousa, o qual atendia pelo abrandamento afetivo de Nathan, casal responsável por boa parte da explosão demográfica daquelas paragens; eram muitos os moleques seus filhos, como eram muitos os moradores do Sobrado, todos da família dos boa-gentes…
Pois bem, e “assim é, se lhe parece” para usarmos a força metafórica de Pirandello, e continuar essa dissertação de saudade e de amor… Os almoços costumeiros no apartamento de Rosa e Nathan, sempre lautos e generosos, reuniam à boa mesa, amigos e comparsas os mais diversos, os quais, geralmente depois da fartança, faziam a digestão num alegre carteado…e assim continuavam amesendados, Joaquim Arruda, Luís Burrinha, Walter Caga n’água, Chico, irmão de Rosa e outros, irmãos de Natan, com o Nezinho Souza e Melque…ali era discutido o ‘Manifesto de Frankfurt’, pois era vezo saber-se que todos já tinham lido ‘O Capital’, de Marx e ‘Eros e Civilização’, de Herbert Marcuse, vindo ainda à baila as revoluções Bolchevista e a Camponesa da China; Prestes, Fidel Castro e Nikita Kruchov eram detalhados biograficamente, com o resguardo de todos, sob o pálido da ‘dialética do materialismo’, porque se diziam convictamente ateus… e nada de discussões fúteis, isso eram escapes para o sustento dos sem preparo ideológico, geralmente burgueses, acostumados a se nutrirem do ópio dessas futilidades, segundo a doutrina do camarada Lênine. Esse era o pano de fundo do comportamento político daquela turma do Sobrado, mal sabendo esses teóricos que o senhor Manoel Maia, o proprietário do imóvel, era um ardoroso seguidor do também déspota António d’Oliveira Salazar, o celibatário português de Santa Comba Dão…
A par dessas coisas, subsistia também por lá, como uma espécie de capataz, o hilário Nezinho Araújo, também genro do velho Maia, alegre, e sempre a impor disciplina à molecagem quando os grupos eram divididos para as respectivas peladas… Uma figura à parte! Mas havia ainda a outra banda, aliás, mais que humana, composta de Nêgo Luz [Ernani], massagista do Sampaio Corrêa, o querido Tricolor de São Pantaleão, fundado por Almir Vasconcelos, o dinâmico e sempiterno Almir Lapinha; Nêgo Luz era sobrinho do famoso Luís Luz, massagista do Clube de Regatas do Flamengo, do Rio de Janeiro, e ainda tio de Nêgo Lápis [Walter Luz], cujo apelido encarna uma perfeita metonímia colocada com requintes de acerto e bom gosto, pois era Nêgo lápis um artista no ofício da marcenaria, a carregar consigo, na ligeireza de seus passos, sua figura física esguia, como se fosse um perfeito lápis de ponta afiada…era ele o oficial marceneiro responsável pelos belos móveis fabricados por uma das firmas do ramo, em São Luís: da mesma família, ainda tinha Seu Cleber, que sofria de nanismo e da visão, mas que irradiava uma alegria contagiante por seu espirito extrovertido; Seu Cleber, nas peladas do velho campinho era aproveitado no gol……e para completar, ainda se plantava no meio do campinho, um velho poço, sem mais serventia, mas obrigado também a pegar os dribles desconcertantes de Quebrando e do Corvo, dois elegantes peladeiros, sendo este último meu querido amigo e compadre. E outros muitos havia…Burro Preto, Cazuza, Mirobas, o famosos Decadela, jogador profissional], Tom [meu primo e irmão] e quejandos…
Perdoem-me o estribilho da repetição, mas não cabe outra coisa nesse dedo de prosa, senão essa minha contração de saudade…E saudades as tenho aos bandos de Maria da Graça, filha de Dona Luzia e de Bigodinho, ela, lavadeira e engomadeira para famílias da redondeza, e ele, pescador, terno enamorado dos remansos do Bacanga e dos encantos da Madre Deus…Um dia Maria da Graça morreu beijada pela peste branca, numa noite de festa no Largo de São Roque…E eu escrevi-lhe um poema!,,, Anjo, quem do Céu te trouxe e te perdeu?… O Sobrado do Velho Maia nem de longe tinha aquele aspecto de cortiço cantado por Aluísio Azevedo também nos fins de século XIX, onde o nosso elegante romancista reclamava sobre as precárias estalagens dos seus moradores; nada tinha de insalubre, pelo contrário, era um ninho de aconchegos e boas querenças e um elefante branco, a dar bons ganhos aos seus proprietários, distribuídos em família, cuja mercancia era estabelecida por uma sociedade em comandita… Divagações eram recitadas em prosa e versos por um garoto chamado Herbert de Jesus Santos, filho de criação amado de Seu Menino (o oficial de Justiça Francisco Galvão dos Santos/Chiquito); Betinho, como era conhecido, depois se fez jornalista e escritor de verdade… E eu por lá, assuntando, enquanto minha memória a tudo registrava, a guardar como o fez, aquele punhado de lembranças meus alfarrábios de saudades…
Mas enquanto seu lobo não vem, uma voz ecoava ao longe… era o jornalista e panfletário José Erasmo Dias que vinha em uma carroça puxada por um castanho burro, carreada por Graça Pega, carroceiro respeitável, morador no Bairro do Goiabal; a carroça estava enfeitada de bandeirinhas e galhos de arruda, a descer a rua da República dos Apicuns, naquela noite de São João… e Erasmo, a gritar a plenos pulmões com sua voz de gralha, que aquela noite era a Noite dos Quebrantos, era a Noite do Equinócio de Verão, enquanto as fogueiras eram acesas, e os fogos explodidos a iluminar de todas as cores o Sobrado do Velho Maia, resplandecente na República dos Apicuns pelo espetáculo pirotécnico criado pela sensibilidade do artista e boêmio João Bandinha!…—
(*)Fernando Braga, poeta e ensaísta maranhense em Brasília



