Diva estava há pouco engajada nas milícias rebeldes, que lutavam contra a invasão americana no Iraque, mas era um dos membros mais corajosos, e mais se oferecia para desempenhar uma missão arriscada. Motivos não lhe faltavam: não morria de amores por Saddam Hussein, que considerava maluco de pedra, além de ditador sanguinário, para comandar o ironicamente, chamado Berço da Civilização; e, muito pior, seria dar amém! à carnificina perpetrada, em qualquer parte do Mundo, pelo não menos alucinado e muito mais açougueiro, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, o “Belzebush”. Este —segundo ela entendia—, sem ter aprendido a lição com os atentados aéreos do 11 de setembro de 2001, sofridos por Nova York, com milhares de pessoas mortas, nas torres gêmeas do Word Trade Center, em Wall Street, o insaciável centro financeiro do universo. Maranhense da gema, mas com ascendência árabe por parte da mãe, testemunhou a invasão ao Iraque, justamente quando se achava em visita ao país, para conhecer os parentes, e aproveitaria as férias, para realizar um cruzeiro, programado no Brasil, pelo Mar Mediterrâneo. Tinha conhecimentos suficientes para contestar o Tio Sam como “Porrete do Globo”, e agora sentira na própria pele, pois, por um triz, não fora vítima do poderoso artesanal ianque, e chorou inocentes, entre mulheres, velhos e crianças, o que seria diariamente, enlutando, inclusive, a família da sua matriarca. Mandou para o espaço o seu “tur” internacional, e se integrou numa organização guerrilheira dos que cultuavam “Alá é nosso deus e Maomé é o nosso profeta”!, com armas pesadas nas mãos, assim que um bombardeiro, errando alvos militares, atingiu um colégio e um hospital. A gota d’água que faltava foi a cara-de-pau das autoridades opressoras, pedindo desculpas, na rede mundial de TV, pelas vidas de civis perdidas. Na resistência iraquiana, cedo tornou-se responsável pelas maiores baixas inimigas, quase todo o santo dia com explosões de projéteis em quartéis, e em comboios, nas vias públicas. Aprontava-se para uma operação que mudaria o curso do conflito e a História da Terra, não lhe restava nenhuma dúvida. Seria uma mulher-bomba, que detonaria Bush, o secretário de Defesa e a secretária de Estado da superpotência, que viriam na moita ao teatro de guerra, porém vazados para o vigilante serviço de inteligência dos desafetos. Eles estariam ali, sem faltar uma vírgula, na véspera de Natal. Razão: revigorar o moral da tropa invasora, que se achava esmorecida, em vista do número de mortos alastrar-se num crescendo por ataques cada vez mais audaciosos e frequentes, e chegando mais para o centro da cidade. Diva, sem nenhuma vacilação, colocou os artefatos por baixo da sua blusa jeans e fofa, com uma máquina fotográfica ao pescoço, à guisa de jornalista estrangeira, para dificultar o faro dos agentes secretos e guarda-costas dos seus alvos. O ponteiro do seu relógio acusava meia-noite de Natal, quando ela, furtivamente, achava-se próximo do local em que Bush, sem-cerimônia, falava para os soldados, oficiais e estado-maior do objetivo pacífico dos EUA, no Iraque, com o mesmo propósito do Menino-Deus, a Quem iriam comemorar o Nascimento dali a pouco. Diva, que estava em ponto de bala, não aguentou mais tamanha hipocrisia, e apertou o detonador do dispositivo mortal…
Acordou com uma dor de cabeça explosiva, em sua cama, na sua residência, na Rua de São Pantaleão, na adjacência da Casa das Minas, com o Sol de 25 de dezembro já bem-posto e alto-falante na pessoa de um vizinho mais tagarela que todos os galos dos quintais da redondeza. Aliás, mantendo sua tradição natalina, soltou uma saraivada de foguetes de artifício, no caso as bombas com que Diva, no sonho agitado, pretendia desencadear era a 3.ª Grande Guerra. Com uma acentuada indisposição até para abrir a boca, reconferiu a véspera de Natal passada com o marido, filhos e vizinhança. Havia abusado da mesa farta e do vinho tinto. Não dispensara sequer um estrogonofe de frango, vindo da morada defronte, por cima da carne de porco, peru, torta de camarão fresco e de sururu feita no leite de coco, galinha cozida e assada; e, antes da ceia, tira-gostos de castanha do Pará e de caju, nozes, ovos de codorna e farofa de frango e miúdos fritos de fressura. Com o crânio estalando, proveniente da ressaca “para lá de Bagdá”, saiu da cama, empurrada pelas imagens inusitadas, e foi escutar mais de perto o som alteado do seu velho conhecido, que a despertara do pesadelo, tocando rojões. Nem bem botou o rosto na janela de frente aberta, ouviu o disparatado senhor, que atendia, à boca rota, pela alcunha de “George Bush”, galhofar para um passante que: —-A Diva não ataca no Natal! —-“Bush”, apelidado assim por sua semelhança fisionômica com o presidente norte-americano, referia-se à famosa DIVA, a demolidora organização popular ludovicense que assolava São Pantaleão e bairros dos arredores, na condição temível de “Departamento de Informação da Vida Alheia”. “Bush” observou a Diva em pessoa, e não perdeu o breque e o espírito natalino: “Bom-dia, Dona Diva! Feliz Natal”!… Ainda sobressaltada, Diva respondeu à saudação, e desta feita levando o cognome do seu interlocutor, como nunca antes fora chamado por ela: —-Também bom-dia, Seu Bush! E Feliz Natal para o senhor e sua família!…
Dito isto, retirou-se para a sua significância de matar aquela ressaca fatal, que lhe atormentava a cabeça, e deitou em seu quarto com o pensamento num chá de boldo que amenizava aflição toda vez que exagerava nos comes e-bebes caseiros. Porque adivinhava todos os seus desejos, num piscar de olhos, o maridão ingressou no recinto com um sorriso de orelha a orelha e uma xícara da milagrosa infusão de folhas, santo remédio para o fígado sobrecarregado. Por via das dúvidas, veio com uma simpatia de fazer ressaca morrer de rir: “Com chá de erva e a caneca abençoada, Diva não bebeu nada”! Sentada, na beira do móvel, para sorver a medicação, a bela afrodescendente, a quem o esposo amava como “a mais maranhense da gema, impossível”!, inicialmente, matutou que ela, descendente de árabe, só tendo pesadelo com Bush e Saddam Hussein, e depois devolveu ao esposo um sorriso de quem não sabia o que aprontara com os excessos da Noite de Natal. Narciso Buzar traduziu-lhe que, mesmo apagando sua luz cedo, cheia de comida e bebida variadas, tudo ocorrera às mil maravilhas. Disse com seu sotaque de quem era o mais árabe possível na vida da doce professora e assistente social Diva dos Reis Santos Buzar.
Do livro de Contos Peru na Missa do Galo