A morte do cidadão Celso Borges nos deixa perplexos, emocionados e comovidos e nos impactará por delongado tempo cronológico. É que, para além da criatura, da pessoa, nele habitavam o ser humano e o poeta, cada persona com uma distinção e destinação de alguém que fez e faz jus à hospitalidade da hospedaria. E, assim, como resposta à morte, eis que o ser humano e o poeta restaram vivos e incólumes, como matéria e memória, no poema e na poesia, agora em permanência vitalícia e perpétua nas palpitações e pulsações dos contemporâneos e pósteros.
Do ser humano e do poeta fizemos o registro e o resgate, no Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante, respectivamente, em 2006, 2007 e 2011. Confira nesta Edição JP TURISMO, pp.
Alberico Carneiro
Do Anuário 4 JP Guesa Errante, 2006,
Num momento em que, no cenário da poesia brasileira marginal ou experimental, inúmeros poetas caem na cilada do caminho mais fácil dos poemas clichês, papéis carbonos, lugares-comuns, blagues e equívocos retumbantes, é consolador dialogar com os textos de um poeta maranhense, como Celso Borges. Lendo-o, tem-se a impressão de que muitos ainda não entenderam que a opção pelo poema mais curto tenha uma finalidade radicalmente diferente que a de encontrar o caminho mais fácil. Construindo os poemas com a convicção de que a eleição dos textos curtos tem mais que ver com a busca de inserir o poema na página com o mínimo de palavras possível, mas com o máximo de significados, Celso Borges, pelo desvio e às avessas, tem procurado uma maneira nova de significar-se poeticamente, identificando-se com uma linguagem que aponta para os mais revolucionários signos e códigos poéticos. Trata-se da visão poundiana do condensare (acumular), proposta pelo poeta faber (trabalhador, que se exercita com febre e ardor). Isto, sem perder de vista uma profunda ligação com as vivências interiores do solitário cidadão cibernético. Essa consciência tem, no panorama internacional, pontos de frequência, convergência e confluência com a linguagem de e. e. Cummings.
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Do livro
XXI POEMAS DE CELSO BORGES
| narciso acha feio o espelho |
rugas rugem no rosto
rasgam a pele pelo meio, rangem
abrem trilhas trevos, travessia de mau gosto
deixam rastro raízes imposto
rugas surgem na vertigem da cara
rasgam traços furam faros, ferem
fazem falhas fendas de carne rara
fabricam ferida que nunca sara
rugas mudam de cor a seda virgem
rasgam finos poros plantam fuligem
fundam sem truque a falta de infância
riscam estrias sobre tenra elegância
rugas inauguram dor e cicatriz na juventude
rasgam ventas mancham murcham toda plenitude
marcham com navalhas impondo duro corte
golpeiam o futuro anunciam sua morte
rugas vagam entre massas maçãs e narinas
rasgam véus vãos secam flores femininas
espalham decadência cegam punhais e beleza
quebram espelhos afiam lâminas trevas tristeza
| now |
o sucesso do amanhã é um comércio
que desconheço como poeta
não me cabe exercitar a beleza do futuro
ou colorir utopias quase sempre alheias.
eis o preço que pago por trazer comigo
o presente em estado de emergência.
| in |
te ponho dentro do poema
entre vírgulas, parêntesis
tua pele passa e brilhas folha
a folha te vejo entre aliterações e rimas
teu corpo vivo nu no verso
teu corpo verso viva o verso
no universo de teu corpo vivo vivo. vivo!
o futuro não é delicado com a gente
mas delicado multiplica-se nas páginas
– tu és o livro do mundo e ponto final
(BORGES, Celso. \vinte e\ um. São Paulo: Corset Artes Gráficas e Editora Ltda., 2000)
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Do livro
NENHUMA DAS RESPOSTAS ANTERIORES
CINEMA
É curioso que me sinta assim: fellini felino
Tudo isso por causa dela
Nem sei quem é ainda
Mas quem exige documento de fadas?
Simplesmente a vi: pasolini pasolinda
SIGO SÓ NO NÓ CEGO DO SIGNO
o silêncio não é uma folha em branco
niggers um após o outro vários
spics além de
jews cada vez mais
mobsters podiam ser menos
wasps entre tantos
white trashes em excesso inúmeros ou quase
baianos a perder de vista inclusive
cucarachas centenas deles ainda assim
japas aos montes já é demais
turcos paraíbas e assim por diante
CÂNCER
A GARGANTA APODRECE
O DENTE CAI DO CÉU DA BOCA E DESCE
A VIDA POR TODAS AS VIAS DESAMADURECE
MAS O CORAÇÃO SE MANTÉM INTACTO
E COMO UM RELÓGIO DE PULSO
PENDURADO EM CORPO AVULSO
REGISTRA NO TEMPO SEU IMPACTO
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DESCRIMINAÇÃO
(BORGES, Celso. Nenhuma das Respostas Anteriores. São Paulo: Adgraf, 1996
ANUÁRIO 5 JP GUESA ERRANTE, 2007
CELSO BORGES: Sem olhar para trás
Alberico Carneiro
Um olhar cada vez mais para frente é a prerrogativa daqueles raros poetas que ousam rebelar-se contra o coro dos contentes. O preço é sempre alto, mas ao final sempre vale a pena. Dá contentamento constatar que alguns escritores maranhenses das mais novas gerações de poetas colocaram a preguiça de lado e puseram o pé na estrada, opondo-se a uma tradição herdada e caduca. Celso Borges é um deles. Fiel a seu projeto inicial, em cada novo livro que publica, Celso Borges tem conseguido surpreender os leitores e a crítica. Em outras palavras, consegue chamar a atenção dos navegantes do texto, para o que faz, de fato, a diferença, em criação literária. Tanto é que ele investe seu talento na linguagem, ou melhor, nas várias formas de linguagens que, em conjunto, compõem a linguagem poética. Nascido em 18 de maio de 1959, começou a escrever poemas aos 16 anos. Publicou Cantanto (1981), No instante da cidade (1983), Pelo avesso (1985), Persona non grata (1990), Nenhuma das respostas anteriores (1996) e XXI (2000). Nenhuma das respostas anteriores é uma obra antecipadora do seu último livro, Música, recentemente lançado no circuito nacional de livrarias. É um livrocd com 40 poemas, interpretados na voz de 21 poetas maranhenses e com a parti cipação dos músicos Zeca Baleiro, Chico César, Nosly, Rita Ribeiro, Paulo Lepetit e Décio Rocha, dentre outros. O projeto do novo livro do poeta é mais ambicioso e abrangente, pelo conjunto de formas de expressões poéticas que elenca, a partir de experimentalismos no campo gráfico-visual e sonoro. Construindo uma obra de ruptura radical com os cânones vérsicos acadêmicos, seus textos não são indiferentes ao que acontece em torno do poema, durante todo o processo de elaboração. Ele aglutina e incorpora, à pagina, as percepções de tudo quanto experimenta durante a geração, a gestação, o parto e a criação do poema. Ele traz, para o poema, o clima, a atmosfera que propicia a concepção, do namoro à cópula, da gestação ao trabalho de parto e criação do poema. Assim, ele interfere em vários planos de arte, incluindo música, artes plásticas, fotografia, arte cênica, arquitetura etc. Segundo informação do próprio livro (confira-se o texto Retrato), […] em Música o poeta amplia o universo de parcerias, a principal delas com o dj e pesquisador Otávio Rodrigues, companheiro de palcos e experimentações nos últimos dois anos, em São Paulo. A idéia é iluminar o texto paralém da página, acrescentando novos elementos à poesia falada. Dar uma estrutura sonora ao poema, além de sua própria sonoridade.
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americana (por causa de bob dylan)
pra ronaldão, que primeiro ouviu a guitarra
de woodie guthrie metralhar as muralhas da ilha
um trem me atravessa lentamente
carregando de ferrugem e neblina
seguindo as estrelas da noite americana
sobre os ombros das planícies do norte
comboios noturnos plenos de chumbo e fumaça
atravessam estradas desoladas, futuros condomínios ali
na fronteira onde os ventos não têm piedade *
nuvens passam apressadas
chuvas que não param
sonhos congelados pelo inverno que não chega
alguém me colocou aqui, alguém me disse sim
escrevi algo em minha alma:
não serei jovem eternamente
quem sabe nasci tarde demais
há falta de beijos nos bailes
há brados surdos nos becos
botas batendo nos bicos das sarjetas
lua no céu de estrela nenhuma
divididos, desesperados
mirando o sol escuro das tempestades
aqui estamos
alvo certeiro
pasto de aluguel
a chacina abre suas cortinas
preparar, apontar, fogo!
rosa negra rosa negra rosa esquálida
buquê de cinzas bétula de guerra
e o céu vermelho aberto sobre o deserto americano
quarenta e dois graus. latitude sul
queimam os esplendores das rodas de fogo
dezesseis estandartes sobre o campo de batalha
dança-se a música dos senhores da guerra
as estradas estão infestadas de sangue nas trilhas
nossos corações têm que ter coragem para a troca da guarda **
all along the watchtower
pássaros cinzentos
voam em direção à rua da desolação
as almas ali são vendidas baratas demais
e o cheiro azedo das galerias
passa rente a rudes borzeguins que caminham
em meio ao frio à febre à fábrica de dor
quarenta e dois anos. latitude além
coleção de parabéluns
abrem suas asas sobre as folhas em queda
a lua a sangue frio
o carteiro das não-cartas
mensagens inalcançáveis para os olhos dos ternos
ternuras em falta falhas de afeto
trincheiras superlotadas
é preciso pôr as capas contra a chuva de morte das tocaias
minha cabeça na bandeja, mandíbulas quebradas
quem se candidata a salomé?
no banquete dos salafrários
salve-se quem puder
ali no vale do elo perdido
pássaros cinzentos não voam além do chão
as águas não param de subir
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