Como ficou certo e sabido, na antecedência da Fundação de São Luís, Maria de Médici, passada na casca do alho, não dava ponto sem nó, quando visava a um projeto por mais aspereza que houvesse. Escolada (desde que chegou a Paris, vindo de Toscana-Itália, para casamento, também de conveniência, como era praxe entre as coroas europeias), fazia vistas grossas às puladas de cerca de Henrique IV, e, para se dar bem, era a sutileza em pessoa, passando o cônjuge, que, numa vez, gracejou “Paris vale bem uma missa”! — ao preferir o cetro da realeza francesa ao protestantismo, alvejado por um edito papal.


Nem bem o corpo do marido esfriava, morto por assassinato, ela empossou-se regente, e procurou a melhor blindagem, haja vista Luís XIII, o sucessor, ter nove anos, e por ser católica fervorosa e a corte corvejando de desafetos.
Corsários franceses em Upaon-Açu — Sem sofrer solução de continuidade, a Espanha permanecia com a faca e o queijo nas mãos. Em 1608, Felipe II rateou a gerência da colonização brasileira, e, em 1612, o III, com a União Ibérica a todo vapor, criou o Estado do Maranhão, sem avisar aos corsários franceses, que, desde os Quinhentos, conheciam o litoral do Brasil mais que os marujos lusitanos, que bordejavam as Índias Orientais. Nessa instância, Daniel de la Touche, Senhor de Ravardière, era hóspede contumaz dos indígenas, aqui, onde aqueles tiveram sucessivos naufrágios.
O começo de São Luís — Liderados por La Ravardière (protestante) e François de Razilly (católico), sob a vigilância dos padres capuchinhos, com o intuito da Fundação da França Equinocial, patrocinados pela Rainha-Mãe Maria de Médici, os expedicionários, com as exigências daquela na cabeça, em três embarcações, partiram de Cancale, porto bretão, em 19.3.1612, desafiaram procelas e fundearam, aqui, em julho. Oficiaram a primeira missa em agosto (12), ensaio para a majestosa de 8 de Setembro de 1612, a da Fundação, e obedeceram a todos os ritos para a procedência da cidade. Ao seu desembarque em Upaon-Açu, no Porto de Santa Maria (na adjacência da Rampa Campos Melo, em homenagem a Maria de Médici), e em nome do Rei-Menino e em honra de Luís IX, o Rei-Santo, e São Luís assim batizada, a colônia entrou em curso. Ficou na cara que Portugal, ali, não apitava nada, sem a anuência de Madri, pouco antes de em lua-de-mel com o reino de França, através de seus sucessores.


Maria de Médici sem errar o alvo — Enquanto isso, em Paris, Maria de Médici nem pestanejou para sacolejar os muxoxos da outra crença e emplacar as núpcias do Rei-Menino, aos 14 anos, com a infanta Ana d´Áustria, a primogênita do todo-poderoso rei Felipe III, da Espanha, católico da silva, e, por que não era de perder a viagem, fortaleceu a aliança com os esponsais da sua filha Isabel de Valois e do herdeiro do trono espanhol, Felipe IV. Com esse estratagema de unir o útil ao agradável, assegurou um período pacífico na França, neutralizando adversários religiosos e outros pentelhos cortesãos.
Água no barco da França Equinocial — Se não houvesse convergência de vantagens entre aquelas casas reais, a França Equinocial teria consolidação. O casório de Luís XIII e Ana d´Áustria, em 28.11.1615, foi o tiro de misericórdia no sonho da França Equinocial, deixada à própria sorte, desde 1613, vazando o barco de La Ravardière, sem a almejada solicitação, via François de Razilly, em novembro de 1612, para regressar de Paris com mais vasos de guerra e soldados, enquanto Maria de Médici salvava o pescoço e a cabeça coroada, dando uma banana para a Ilha dos Tupinambás.
Papa coagido no Tratado de Tordesilhas — Na sabença do Globo, Espanha e Portugal eram unha-e-carne, na usurpação de possessões no Novo Mundo, bastando que pusessem a vista cobiçosa, como coagiram o papa Alexandre VI, em julho de 1494, a engendrar o capcioso Tratado de Tordesilhas, com a lambança de um meridiano fajuto, localizado a 370 léguas da Ilha de Cabo Verde, concedendo de bandeja aos seus favoritos as terras, respectivamente, no oeste e no leste. (Antes, em 1493, logo à Descoberta da América, em 12.10.1492, pelo navegante genovês Cristóvão Colombo, a serviço dos reis da Espanha, Isabel e Fernando de Aragão e Castela, esse Alexandre VI forjou a Bula Inter Coetera, com a fixação de uma linha imaginária, a 100 léguas da Ilha dos Açores, para os comparsas fracionarem a pilhagem geográfica, arapuca que D. João II, rei de Portugal, esconjurou, ciente de que o malicioso, espanhol de nascença, puxava a brasa para a sua sardinha) Saltava aos olhos que a Espanha agia quanto sócia de Roma, somando a vontade com o desejo de comer, pois, em compensação, era um só cofre. Felipe era rei da Espanha (III) e de Portugal (II), qual seu pai e antecessor (Felipe II).


À procura de um fundador que não fosse francês — Após a epopeia homérica daqueles, o motejo de francófobos sobre o fundador de São Luís, entre: O pernambucano Jerônimo de Albuquerque; Alexandre de Moura (talvez por ser general lusíada); e até João de Barros, que nunca alcançou Upaon-Açu, com seus filhos soçobrando nas “águas que correm brigando”. Não há um arrazoado sequer que forneça a façanha para Portugal. Nem num fado de Amália Rodrigues, nem na Moura Torta (do supersticioso folclore luso), ou em versos monumentais de Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena,/se a alma não é pequena.(…)/Navegar é preciso,/viver não é preciso”! Ou em “Cachopa (rapariga, elogio lá) de uma casa portuguesa, com certeza!”
Doutora em França Equinocial — Em O Brasil Francês: as singularidades da França Equinocial (Ed. Civilização Brasileira, 356 p.), Andréa Daher foi mais que luzidia: “Entrar no domínio remoto que se descortina com o Maranhão do início do século XVII é um dos percursos a que nos convida este livro. É um mundo a que os franceses logram mesclar-se à cultura tupinambá, garantindo, em alianças, o escambo e o sucesso dessa empresa. Sua presença entre os índios é, assim, um evento mais antigo e amplo, iniciado com meninos franceses levados a viver em meio às tribos, para que se integrassem, tornando-se seus intérpretes”. (Dr.ª em História pela École des Hautes Études em Sciences Sociales, prof.ª do Departamento de História em Pós-Graduação da USP, coordenadora do Laboratório de Pesquisa em História da UFRJ, etc.)
Texto: Herbert de Jesus Santos
Edição: Gutemberg Bogéa