

Por Washington Luiz Maciel Cantanhêde
Comemora-se, neste 19 de abril, mais um aniversário do Município de Vitória do Mearim (192 anos), e – para evitar equívocos, registre-se – não o aniversário da cidade de Vitória do Mearim (apenas 101 anos), tampouco da história integral ou do surgimento deste lugar (que, com tal nome, surgiu nalgum tempo da primeira metade ou de meados dos anos 1700; e teve outro nome muito antes…).
É oportuno, portanto, tratar de um aspecto relacionado à data cívica: qual o município-mãe de Vitória do Mearim? Em outras palavras, de qual unidade territorial, autônoma político-administrativamente, se desmembrou o território que formou o novo município?
O trato dessa matéria faz-se mais oportuno para espancar a dúvida em que ainda hoje se dizem imersos alguns interessados na história regional do povo do baixo curso do Rio Mearim, a despeito do livro que publiquei há mais de 25 anos, onde a matéria foi satisfatoriamente exposta e esclarecida, com provas documentais – livro intitulado “Vitória do Mearim da Emancipação à Era dos Intendentes” (set.1999) e que foi corroborado, nesse particular, por textos dos dois últimos que publiquei, em 2023 e 2024.
Quem já se dedicou a rebuscar e explorar as fontes primárias e as publicações do começo dos anos 1800, fazendo pesquisa de respeito, digna do nome, verificou que, pela Provisão Régia de 10 de março de 1747, foi criado um julgado no Mearim, espécie, ao mesmo tempo, de protomunicípio e “quase-comarca” (assim diríamos hoje), com os respectivos juízes ordinários nomeados pelo Senado da Câmara de São Luís do Maranhão entre 1750 e 1833.
Da época em que existiu essa configuração político-administrativa e judiciária restam documentos avulsos no Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa-Portugal, e os respectivos livros de notas, que compulsei por primeiro, dentre os pesquisadores da história regional, no antigo Cartório do 2º Ofício da Comarca de Vitória do Mearim, e que hoje se encontram, apropriadamente, no Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão.
Um relatório elaborado pela Comissão da Administração e Interesse Público, encarregada pelo governo provincial do Maranhão de recomendar providências para melhorar a realidade maranhense, atestou em 1822: “O Mearim é um Julgado regido por um único juiz ordinário, eleito pela Câmara desta cidade [São Luís, a única que então existia], e por ser considerável pela sua população, é a Comissão de parecer que seja elevado à condição de vila, com a sua Câmara, assinando-se-lhe terreno para seu patrimônio, visto haver muitos devolutos e desaproveitados no seu distrito.” (Dicionário Histórico-Geográfico da Província do Maranhão, de César Marques; verbete “Tribunal da Relação”).
Transcorria já o ano de 1831 e como tardasse a emancipação do dito julgado, recomendada por aquela comissão, muitos dos seus moradores decidiram oferecer à Câmara de São Luís uma representação pela criação do Município, em face do preenchimento dos requisitos legais, pois, dando 7 eleitores, tinha “maior número de fogos do que os exigidos para a criação de qualquer vila”.
A Câmara comunicou o fato, em 27 de abril do mesmo ano, ao presidente da Província do Maranhão, Cândido José de Araújo Viana, depois agraciado com o título de Marquês de Sapucaí.
Em sessão realizada no dia 11 de maio, o Conselho Geral da Província tomou conhecimento do ofício da Câmara, resolvendo que, “na forma do Regimento do Exmo. Conselho, se levasse este objeto ao conhecimento do Governo, mostrando a utilidade desta criação e indicando [para] limites do projetado município os do julgado, até que se faça uma conveniente divisão do território da Província.”
Sobreveio o Código de Processo Criminal, em 1832, o primeiro do Brasil. Para cumpri-lo, o Conselho Provincial, em sessão realizada no dia 19 de abril de 1833, aprovou uma resolução dividindo a Província em termos e comarcas, e no bojo disso (art. 10) elevando o Julgado do Mearim à condição de vila (município), colocando-o como termo da Comarca de Itapecuru : “O Julgado do Mearim fica ereto em Vila, compreendendo o seu termo o território da Freguesia de Nossa Senhora de Nazaré”.
Cumprindo a normativa então vigente, o restante do processo de criação e instalação do novo Município do Mearim foi centralizado na Câmara Municipal de São Luís do Maranhão e por ela dirigido. É o que também comprovam as fontes primárias, à disposição dos interessados no Arquivo Público do Estado do Maranhão, e as publicações em jornais dos anos de 1833 e 1834.
E por que foi assim? Exatamente porque, segundo o decreto imperial de 13 de novembro de 1832, cabia à Câmara Municipal a que pertencesse o local de uma nova vila, recém-criada (art. 1º), a condução do processo de eleição dos seus primeiros mandatários, bem como o de sua consequente instalação.
Dessa forma, realizada em 16 de junho de 1833 a eleição da primeira Câmara da Vila do Mearim e cabendo então a posse dos vereadores e a instalação do Município, à Câmara de São Luís tocou tal responsabilidade.
Esse evento, como não ocorreu imediatamente à eleição, obedeceu, entretanto, ao disposto em um novo decreto, de 22 de julho de 1833, pelo qual se passou a permitir à câmara do município-mãe delegar ao vereador mais votado para a primeira câmara da nova vila, futuro presidente desta, a direção do ato de posse dos novos vereadores e de instalação da nova câmara. Dessa forma, a posse dos primeiros vereadores e a instalação da nova Vila do Mearim deveria ser presidida por Bernardo José Nogueira, recém-eleito vereador com a maior votação.
O evento tardou a acontecer, todavia. Como, somente em 18 de dezembro de 1833, a ata da assembleia paroquial de eleição dos primeiros vereadores da Vila do Mearim foi registrada no livro competente da Câmara Municipal da Capital, a instalação do Município veio a ocorrer já em 1834, no dia 7 de janeiro.
Sob a presidência, efetivamente, do vereador Bernardo José Nogueira, tudo se iniciou pelo juramento do vereador Manoel Lourenço Bogea para servir como secretário do ato, o que lhe foi deferido pelo Presidente, uma vez que se achava “juramentado pela Câmara Municipal da Província do Maranhão” e “autorizado, pelo Decreto de 22 de julho de 1833, para instalar esta vila e deferir juramento aos vereadores”, como se lê na respectiva ata, sob a guarda do Arquivo Público Estadual.
Seguiu-se o restante do ato de posse dos edis e instalação do novo município, em que logo pelo presidente, conforme consta da ata, “foi dito que se achava empossado pela Câmara Municipal da Província do Maranhão, de que esta foi desmembrada e ereta em vila, compreendendo o seu termo todo o território da Freguesia de Nossa Senhora de Nazaré, em sessão do Conselho de Governo de 19 de abril de 1833, e autorizado pelo Decreto de 22 de julho do dito ano de 1833, para a instalação desta vila, e deferir o juramento aos mais vereadores”.
O documento original dessa ata (“Auto de Posse e Instalação”) é reproduzido, nas páginas que mostram os trechos transcritos acima, devidamente indicados por setas, como ilustração deste texto, para o devido desengano de quem precise.
Começava então em 7 de janeiro de 1834 a vida político-administrativa integralmente autônoma do povo de Vitória do Mearim, decorrente da ereção do Julgado do Mearim em um novo município maranhense, desmembrado do Município da Capital, com o seu termo compreendendo todo o território de então da imensa Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré.
Tudo isso veio a lume no meu livro de 1999, citado antes, onde todas as fontes foram cuidadosamente citadas, várias delas ali transcritas, e algumas até reproduzidas.
De nenhuma dessas fontes colhe-se menção a qualquer participação da Vila de Viana nos atos tendentes à emancipação de Vitória do Mearim, ocorridos em 1833 e 1834, como se do território daquela tivesse saído esta nova comuna. Ao contrário, toda a documentação é de clareza solar: desmembrou-se do território da Cidade de São Luís do Maranhão a nova célula político-administrativa, pois a ele sempre pertencera, aliás desde antes de ser um julgado (1747).
A despeito disso, o livro “Um Passeio Pela História do Arari” (2011), de autoria de João Francisco Batalha, cita o conteúdo do meu livro de 1999, quanto a esse aspecto, como apenas uma versão a mais (p. 41); e o artigo “São Luís Continental”, de autoria do mesmo filho de Arari, publicado na recente edição do Jornal Pequeno (São Luís-MA) de 09/10.fev.2025, afirma que “paira a dúvida se Vitória do Mearim, um dos municípios mais antigos do Maranhão, emancipado em 1833, teria sido parte territorial de Viana ou se desmembrou também de São Luís”.
Ora, diga-se, embora seja, a rigor, desnecessário e, portanto, somente por amor à argumentação é que se diz, que o território da Vila de Viana, criada em 1757 como vila de índios e assim mantida até o começo dos anos 1800, jamais abrangeu o Julgado do Mearim, conforme se vê no Dicionário de César Marques, no respectivo verbete. Além disso, no “Itinerário da Província do Maranhão”, de Antônio Bernardino Pereira do Lago (1820), Viana e Arraial da Vitória são tratados como distritos administrativos e militares da dita província, distintos um do outro, sem qualquer relação de dependência político-administrativa de um para com o outro. Aliás, a população de Viana, segundo essa obra, era então menor do que a de Vitória.
Note-se que quando o texto do artigo do Jornal Pequeno diz que haveria dúvida se Vitória do Mearim se desmembrou “também de São Luís” é porque, em outras partes, afirma (antes divertindo que revoltando) que Arari – o vizinho lugar, sim; esse, sim! – ter-se-ia desmembrado de São Luís para passar a fazer parte de Vitória do Mearim quando este município surgiu, afirmando também que, anteriormente à referida emancipação, o Município de São Luís chegava somente até lá (Arari), isto é, deixando o atual território de Vitória de fora (o que se presta à sugestão tácita de que pertenceria este, portanto, ao Município de Viana)…
Diante de todo o conjunto probatório antes citado, não se encontra explicação plausível para tais afirmações. Seria somente, como disse Maquiavel, uma demonstração de que preconceitos têm raízes mais profundas do que princípios? Estaria ainda viva a velha rivalidade pueril entre os dois municípios irmãos? Ou teria outra motivação?
Para prosseguir na refutação dessas afirmações, e sem mais delongas na argumentação, veja-se na documentação do Arquivo Público Estadual que, na divisão do território municipal em distritos, que a Câmara do Mearim fez em sessão de 9 de janeiro de 1834, o segundo distrito era exatamente Arari; que a Paróquia de Nossa Senhora da Graça do Arari foi criada (1858) ao extrair-se o seu território de dentro da Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré de Vitória do Mearim, na qual estava o lugar Arari, que, inclusive, para ter sua capela, inaugurada em 1811 como filial daquela igreja matriz, precisou da cessão da imagem do orago pelo pároco de Vitória do Mearim, com licença episcopal para tanto; e que o Município de Arari foi criado (1864) mediante desmembramento do Município de Vitória do Mearim, que lhe deu os distritos de Arari e Curral da Igreja para formarem o seu território, e cujos primeiros vereadores foram empossados sob a direção da câmara do município-mãe, que também dirigiu a instalação do novo município, que outra não era senão a Câmara de Vitória do Mearim…
E se alguém pode compreender que, antes de 1833-1834, Arari pertencia a São Luís não é de outra forma senão como um dos vários lugares do Julgado do Mearim, este, sim, verdadeiramente, uma circunscrição territorial do Município da Capital, tanto que os seus juízes ordinários eram nomeados pela câmara deste.
Dessa forma, anote-se de uma vez por todas: a Ribeira do Mearim, integralmente, fazia parte do Município da Cidade de São Luís do Maranhão até que se criasse, em 1833, o primeiro município da região, o da Vila da Vitória do Mearim, desmembrado, portanto, do território da Capital e que, nos quase duzentos anos que se seguiram, deu origem, integral ou parcialmente, a muitos outros, a exemplo do Município da Vila do Arari, criado em 1864.





