Metade do século XVII. O famoso Padre Antônio Vieira, considerado o maior orador sacro do Mundo, ainda caminhava e pregava por terras maranhenses, quando escreveu seu Sermão de Santo Antônio aos Peixes, uma das maiores obras de arte da oratória de língua portuguesa.


De modo alegórico, porém firme, o jesuíta dividiu os seres que povoavam nossos mares em dois grupos. De um lado, ele colocou os peixes que demonstravam ter algumas qualidades. Nesse grupo, ele destacou a rêmora (representando a força e a tenacidade diante dos obstáculos), o torpedo (símbolo da resistência contra a opressão) e o quatro-olhos (peixe que consegue enxergar em diversas direções e assim se prevenir contra os pecados). Do lado do mal, ele citou os peixes roncadores (representantes da arrogância e da soberba), os peixes pegadores (conhecidos por serem parasitas) e o polvo (uma metáfora marinha da traição). Cada peixe citado por Vieira é a representação icônica de um grupo humano de nossa terra, para o bem ou para o mal.
E agora, em pleno século XXI, no meio de tantos recursos e tecnologias, como seriam as comparações do grande Antônio Vieira? Como ele veria o homem de hoje? Com que peixe ele compararia um cidadão como Herbert de Jesus Santos? Impossível saber. Mas provavelmente esse nosso jornalista e escritor, que tanto defende a Cultura de seu povo, seria colocado ao lado dos bons peixes de nosso mar, de nosso Maranhão.
Herbert seria do tipo de peixe que saberia se defender e ao mesmo tempo protegeria os que dele dependessem. Ele se colocaria ao lado dos que, sem cair em um tradicionalismo utópico, estivessem sempre dispostos a defender as verdadeiras tradições de seu cardume, de se postar contra peixes maiores e, teoricamente, mais poderosos e fortes, com o único propósito de defender aquilo no qual acredita.


E é essa defesa de seu povo, de sua história, de suas tradições e de seu próprio passado, sem esquecer o presente e nem mesmo o futuro, que se vê neste livro que chega a nossas mãos. O subtítulo da obra serve como guia para os leitores mais desavisados e ao mesmo tempo pode ser visto como uma síntese do assunto geral do trabalho.
Logo, para começar, o leitor se deparará com um belo poema-depoimento, uma espécie de rememorar de um tempo que não volta, mas que, ao mesmo tempo, nunca passou, pois ficou gravado na essência do ser, nas retinas e na memória de quem pode comparar o antes e o depois. A cândida vovó recebe os leitores com uma simpatia que só a ternura da eternidade pode oferecer.
A seguir, as páginas do livro são tomadas por um desfile de eventos e personalidades que marcam ou marcaram não apenas o Bairro da Madre de Deus, mas também boa parte da Grande Ilha. Dessa forma, o leitor que já conhece o bairro se sente bem à vontade para passear por ruas e becos, com permissão para adentrar nas casas, abancar-se e ter um dedo de prosa com cada uma das centenas de pessoas que povoam as páginas do livro. Já quem não está habituado com as tradições do lugar pode, a princípio, sentir certa estranheza, mas rapidamente se habituará com os ritmos que ecoam de cada esquina e, antes da metade do livro, já se sentirá familiarizado com as ruas que guardam a história de um povo trabalhador, digno e festeiro.
Este livro que temos em mãos nos oferece várias oportunidades de leitura. Pode ser visto como um esboço de trabalho de cunho antropológico, como apontamentos para uma futura história do bairro, como trabalho artístico ou como forma de catarse. Mas, de qualquer forma, há de se destacar o senso crítico e a elegância estética desse escritor que há muito tempo vem lutando pelo resgate e pela valorização da Cultura Maranhense. Século XXI. Séculos depois de o jesuíta português encantar o Mundo com as metáforas de seu Sermão de Santo Antônio aos Peixes, Herbert de Jesus Santos brinda o nosso povo com um livro que tem tudo a ver com o peixe de São Pedro, com a grande festa de junho, com o dia-a-dia, com a história e com a essência de um povo que muito luta para manter viva a chama das tradições do Bairro da Madre de Deus, de São Luís e do Maranhão como um todo.
Em cada página, em cada linha, em cada imagem, o autor cumpre com seu papel de cidadão apaixonado por sua terra e que deseja dividir com os amigos e leitores um pouco de seu vasto conhecimento sobre um passado que não pode ser esquecido, pois faz parte de nossa história.
Então, acendam a fogueira, preparem a garganta, aqueçam todos os instrumentos, pois é hora de começar a ler esta obra em ritmo de toada, ao som das matracas, das orquestras e dos pandeirões, com a cadência do talento de Herbert de Jesus Santos e com as bênçãos de São Pedro e de todos os demais santos juninos.
Texto: José Neres – Professor, escritor e membro da Academia Maranhense de Letras


São Pedro com minha Avó Marcela
(Herbert de Jesus Santos)
Minha Avó tirava de letra,/pois, mesmo analfabeta, em magia,/para acordar o dia mais cedo,/era Marcela, e, também, Luzia,/em acender alegria e estrela/aos companheiros e aos filhos pescadores,/ com sua venda de mingau de todo o dia,/antes de brilhar São Pedro e seus andores./Na Festa do Glorioso São Pedro,/num tempo que ainda não foi,/sabia de cor e salteado o segredo,/no largo enfeitado pro Boi,/qual zabumba que vinha distante:/de Mizico, Medonho, ou Lorentino,/dos quais, eu guardava o brilhante,/caído do Boi e do brincante,/para eu preservar seu destino,/numa caixa de papel coração,/que cresceu mais que o menino/e reluz no céu do seu chão./Minha Avó tinha cada ideia!/ Queria que eu fosse alguém/na vida que é plateia/e louva mais os que têm!/Vovó cresceu minha infância/em seu brilho de todo dia./Ser rico de luz, sua ânsia,/com ouro de tolo, não me via./Estou sujando a capela,/São Pedro é a bola da vez:/eu fiz escola por ela/e lia o jornal pra nós três./Estou sujando a capela,/São Pedro não estudava;/a zeladora era ela,/de mim e do santo cuidava./E disso eu fazia praça,/satirizando o enredo,/e me lavava na graça,/botando a culpa em São Pedro./Cara de santo eu fazia,/mas Vovó conhecia cara/de tambor que amanhecia,/santo de casa e de arara:/—Nem “mais” nem meio “mais”,/santo não tem “dô” de dente!/Naquilo em que eu era capaz,/faltava ao santo ser gente./Passa o tempo, marco passo,/com a fronte erguida, porém,/pois não corrompo o compasso/da reta que a linha tem./Na lida, publico agora/que deixam a justiça ao léu,/e Vovó me crer nesta hora/e bota ordem no céu./Tem espaço para arrumar,/no Alto, celeste ermida./Porque tem São Pedro, lá,/e aqui, minha luta renhida,/ralha, ali, com o Santo do Pedro,/ e com os meus santos, cá,/contudo, nos sendo querida,/entendendo-se a benquerença que há em:/ “Que santos putos da vida!”/Chegou sem pedir licença,/não era a Irene do Poeta Manuel Bandeira,/nem tratou “sua incelença”,/“meu branco” nem abriu porteira./Era só pra varrer o céu/e para cuidá-lo tão cedo:/ela, na Madre de Deus,/já era assim com São Pedro!