Na quinta (20), o Coletivo Audiovisual Quariterê divulgou em suas redes sociais a lista de obras selecionadas para a etapa competitiva da V Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso, que acontecerá em setembro e entre os trabalhos escolhidos, estão três produções de diretoras maranhenses: os videoclipes “Batidão”, de Jessica Lauane; “Obsessão” de Enme Paixão e o documentário experimental (estilo de cinema conhecido por se diferenciar das práticas da cinematografia comercial) “Quedaria”, de Brenna Maria. Todos produzidos em 2020.


Após apenas um dia de gravação; Batidão, que foi estrelado por Enme Paixão e dirigido por Jessica Lauane, foi lançado em fevereiro desse ano e contou com a produção da Clockwork Filmes; repleto de referências a renomadas artistas da musica mundial, como Beyoncé e Rihanna, a ideia do projeto sempre foi mesclar energia, empoderamento, autoestima e raízes. Jessica Lauane, que já havia trabalhado com a drag nos clipes “Sarrar” e “Killa”, conta como surgiu a inspiração para o clipe e deixou claro a visão que tem do evento.
“Sempre fui muito fã da Beyoncé e da Rihanna, fazer referência a elas em alguma produção é quase intuitivo, elas representam força, presença, autoestima, empoderamento, liberdade e movimento e sou grata a todos por confiarem em mim. O que elas representam tem ligação com Mostra de Cinema Negro, afinal eventos como esse são importantíssimos devido ao fato de que, além de toda representatividade, identificação e autoestima, eles também nos dão voz pra contarmos nossas diversas narrativas”.
A própria Enme Paixão dirigiu de forma independente de dentro de sua casa o clipe “Obsessão”, a produção foi lançada em junho e mistura os ritmos funk, rumba congolesa, afrobeat e trap, além de ter contado com a produção do DJ Palazi, que já trabalhou com Gloria Groove e Rico Dalasam. Enme Paixão, que sempre teve o costume de roteirizar e co-dirigir suas produções, falou o que significa para ela ter seu trabalho escolhido para o evento que irá acontecer no Centro-Oeste.
“Esses aquilombamentos são ferramentas que conversam muito com meu propósito de trabalho, produzir com profissionais negros é prioridade em tudo o que eu faço e estar nessa mostra com dois videoclipes, com uma equipe majoritariamente negra, com uma diretora negra, faz sentido não só para mim, mas para quem me ouve e me assiste. É o discurso e prática convergindo no mesmo ideal.”


Brenna Maria dirigiu, produziu e roteirizou sozinha “Quedaria”, documentário de 5 minutos e meio que foi publicado no canal de Youtube da diretora em maio desse ano e, como o enredo diz,comenta de forma poética sobre corpos em constante queda e aborda assuntos ligados a ansiedade e a forma que as pessoas vivenciam o cotidiano. Em entrevista a nossa reportagem, comentou sua visão sobre audiovisual de forma geral e deu sua opinião sobre a situação do setor no Maranhão.
“Acredito que o cinema e o audiovisual não deve se restringir as grandes produtoras e ao poder aquisitivo de equipamentos e verbas, afinal existem pessoas que produzem dentro dos bairros periféricos e conseguem desenvolver trabalhos poéticos e vibrantes que não recebem muito reconhecimento, mas fico feliz em saber que o audiovisual vem ganhando força no nosso estado, estando inclusive com uma presença ainda mais forte com cineastas negros e indígenas”.
A jovem cineasta também comentou sobre alguns dos impactos causados pela situação em que o mundo está vivendo.
“A pandemia do coronavírus trouxe a tona muitas questões sobre a forma em que vivemos e nos relacionamos com a natureza e nossos semelhantes. Depois que o período de isolamento começou li dois livros: ‘Ideias para adiar o fim do mundo’, de Ailton Krenak e ‘Discurso sobre colonialismo’ de Aime Césaire e percebi que ambos falavam sobre a forma de como vivemos e nos relacionamos em sociedade”.


O evento
A Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso surgiu com os objetivos de contribuir para a relação entre o estado e o cinema, que ainda é incipiente, e aumentar o nível da representação negra nas obras do estado do Centro-Oeste, onde tal ato é pouco explorado.
A primeira edição do evento foi alvo de protestos devido ao fato de ter contado com organizadores e convidados brancos, o que serviu de catalisador para a criação do Coletivo Audiovisual Negro Quariterê; que foi batizado com esse nome para homenagear o Quilombo de Quariterê, localizado na região de Vila Bela, primeira capital do Mato Grosso, e que desde então organiza as edições da mostra, que tem crescido a cada ano.
Em 2020, ocorre à quinta edição da Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso e a temática será sobre(vivência), que foi escolhida objetivando falar sobre a resiliência do povo negro. De acordo com a curadoria do evento, é impossível não pensar que a população negra está sendo atingida de forma desproporcional pela pandemia e ao perceber tal fator, foi pensado em um tema que falasse das maneiras de viver que a população negra reinventa em momentos de crise.
As inscrições para participar do evento ocorreram entre os dias 30 de Junho e 30 de Julho e para a atual edição foram aceitas produções sem limitações de tempo e datadas a partir de 2017, que concorrerão nas categorias de documentário, experimental, videoclipe e ficção. Entre os dias 25 e 31 de Agosto está ocorrendo a pré-mostra de Cinema Negro de Mato Grosso, que disponibilizará os filmes vencedores das ultimas edições e que poderão ser vistos no site quariterê.com. br.
Entre as produções da pré-mostra está “A grande ceia quilombola”, projeto maranhense de 52 minutos datado de 2017 que foi dirigido pela antropóloga Ana Stela Cunha e pelo cineasta Rodrigo Sena, que foi escolhido como melhor documentário pelo júri oficial na edição do evento que ocorreu em 2019. O filme retrata a forma de como os habitantes do Quilombo de Damásio, localizado na cidade de Guimarães, obtém alimentos para abastecer suas famílias, que consistem em métodos que envolvem extração e cultivo.
Ana Stela Cunha possui mestrado e doutorado em lingüística africana pela USP e objetivando conhecer melhor os quilombos do Maranhão; realizou, no final de sua graduação, uma viagem ao estado; onde acabou conhecendo o Quilombo de Damásio. A antropóloga trabalha com quilombos desde 1996 e se encantou pelas riquezas culturais dos interiores, chegando a criar amizades com os quilombolas da região de Guimarães.


“Trabalho em Damásio há mais de duas décadas, conheci muitas pessoas por lá, cheguei a ver nascer e crescer crianças que hoje são jovens que estão na universidade; eu não só acompanhei o desenvolvimento das pessoas como também o da comunidade como um todo. Vejo eventos como a Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso como forma de expor a representatividade do povo negro, valorizar nossa produção, por exemplo, é valorizar os trabalhos deles”, afirma Ana Stela Cunha.
Após aceitar o convite da antropóloga, Rodrigo Sena conta que para decidir o tema da produção, foi feita uma reunião com os moradores de Damásio e, em entrevista a nossa reportagem, também deixa claro a importância de abordar assuntos que não costumam estar entre os alvos das grandes mídias, além de revelar o que sente quando o assunto do resultado da premiação vem à tona.
“Nós estamos sofrendo cultura de massa a todo instante e eu acredito que ter passado cerca de um mês filmando no quilombo foi muito bom, pois vi como uma oportunidade de sair um pouco da área da cultura de massa e acrescentar certo nível de conhecimento para a mente e para o público. Ficaria orgulhoso independente do resultado, mas para mim, ter levado o prêmio é motivo de alegria, pois me senti como se tivéssemos conseguido amplificar o alcance da cultura do quilombo”.
A etapa competitiva da V Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso será transmitida pelo site oficial do Coletivo Audiovisual Negro Quariterê, entre os dias 6 e 13 de Setembro.
Texto: Ítalo Cavalcanti – Estagiário do JP Turismo