Após uma semana fora, desembarquei em São Luís em tarde chuvosa. Encontrei uma cidade orvalhada, com cheiro de terra molhada, que me remonta à infância.
“A infância não é um tempo, não é uma idade, uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não é muito tarde”, citou Mia Couto.
Não sou nostálgico, mas certas coisas me fazem voltar no tempo, e o período das chuvas é uma delas. Lembro dos quintais das casas dos meus avós: pais e maternos. Tive a felicidade de conviver com os quatro avós. Meus avós paternos, Joaquim e Olindina eram donos do Sítio do Físico, na região do Bacanga, onde estávamos nos finais de semana. Os avós maternos, Agripino e Maria do Carmo, ocupavam uma ampla casa em Rosário, com o quintal que estendia até o rio Itapecuru, interior do Maranhão, onde estávamos nas férias. Fui menino pé no chão, terra molhada com cheiro de azoto.
A infância não é apenas um tempo, é uma geografia da alma, uma pátria secreta onde os sentidos ainda não foram domesticados pela razão e o mundo ainda não se tornou perigoso. Local onde o real e o imaginário se entrelaçam sem posição, cada coisa brilha com uma espécie de eternidade inocente, como se tudo estivesse sendo visto pela primeira vez — e talvez tenha acontecido. Pois a criança não observa o mundo, ela o habita com pureza, com inteirezas, sem as fissuras que o adulto aprenderá a carregar.
Recordo a infância como quem sonha um sonho revivido. Uma língua em que as palavras ainda não pesavam tanto e os silêncios ainda não doíam. Tudo era símbolo, metáfora viva: uma caixa virava navio, uma poça era um oceano, uma tarde bastava para conter a eternidade. O tempo não era cronológico, era existencial. Não se contava em horas, mas em descobertas. E a vida, essa senhora grave que hoje nos cobra coerência e produtividade, ainda não nos apresentou sua fatura.
Lembro do tempo chuvoso de pipira na mangueira, e mangas no chão. Sou do tempo que não se comprava mangas, pois viraram lama, tamanha abundância. Rebobino a memória e me vejo a soltar pião, a rodopiar na terra úmida, e brincar de bolinhas de gude coloridas, com borrocas feitas com o calcanhar.
O filósofo Nietzsche dizia que o espírito livre deveria reconquistar a leveza da criança, não como regressão, mas como superação: a criança como símbolo do eterno retorno, da criação pura, da espontaneidade não corrompida. Talvez por isso a infância nos fira com tanta beleza — porque sabemos que ela não volta, e que, no entanto, é ela que deveria ter sido o tempo inteiro.
Também são esses tempos pluviométricos, as lembranças da Semana Santa. Minha mãe, Maria da Conceição, católica, acompanhava a procissão do Senhor Morto pelo centro histórico de São Luís, na sexta-feira. O andor com Jesus morto, vinha coberta, para proteger da chuva. A grande alegria de menino, em acompanhar a mamãe nas procissões era o sorvete que ela comprava após a procissão, antes de irmos para casa. Sou da época em na Sexta-feira Santa era tempo de silêncio, em respeito à passagem do Senhor Jesus. A casa não era varrida, as janelas eram abertas, a televisão ligada. Com o tempo tudo mudou. Hoje, até festas temáticas na Sexta-feira Santa ocorre. Que Deus tenha misericórdia de nós.
Luiz Thadeu Nunes e Silva – Engenheiro Agrônomo, escritor e globetrotter. Autor do livro “Das muletas fiz asas”. Instagram: @Luiz.Thadeu – Facebook: Luiz Thadeu Silva.