Quando fui acordado naquele dia, exatamente às cinco horas da manhã, por um amigo, me falando de uma perigosa barrigada que cometi em minha coluna diária em um jornal da oposição, onde escrevia, deu tempo apenas de correr até a porta do Tribunal de Justiça para tentar pedir desculpas a essa autoridade envolvida.


Acontece é que tal barrigada não dizia respeito a briga política, intimidação ou ainda vingança ou pirraça. Mas sim, a um erro, quase comum naquela época, quando os jornais eram montados nas placas de impressão e as fotos eram chamadas de clichês.
Por um motivo ou outro o clichê da autoridade judiciária havia sido trocado pela foto de um artista transformista chamado Jaqueline Debois, que se apresentaria na famosa Boite Maré, de saudosa memória, na área litorânea da cidade de São Luís-Ma.
Vocês podem imaginar porque fui acordado às cinco da manhã. São Luís, naquela época, ainda era uma cidade de conceitos muito tradicionais. Anote-se!
A autoridade envolvida era respeitada por suas qualidades de excelente homem público, de boa fé e de ilibado conhecimento jurídico. E ademais, o jornal tinha uma tiragem imensa.
Eu sentei, então, nas escadas do Palácio da Justiça, na praça D. Pedro II, centro da capital do Maranhão e lá fiquei até as nove horas da manhã. Nesse ínterim, pensei um milhão de coisas. Uma delas, ser sumariamente demitido por um erro que eu não cometi e sim, por um descuido do diagramador, trocando os clichês da minha página. Ele também não merecia ser demitido.
Minha Carteira Profissional


O jornalismo era a minha vida. Tudo! Comecei nas redações como ajudante de linotipia fazendo a tiragem da prova das linhas que saiam da máquina de impressão a quente. A máquina de linotipo produzia pequenos artefatos de chumbo, com as letrinhas que comporiam todo o texto no final da montagem.
Quando eu era pequeno, a minha mãe me levava à tiracolo, pois não tinha com quem deixar um menino travesso de 5 anos. Ficava eu sentado ao lado dela, em sua mesa de datilografia, pegando os papeis do cesto e tentando ler, ou fazendo que escrevia com uma velha caneta esferográfica.
Foram alguns anos nessa aventura. Aos 14 estava pronto para iniciar minha carreira de jornalismo e minha primeira reportagem foi sobre o Sítio do Físico ou Sítio de Santo Antônio das Alegrias, construído no final do século XVIII, à margem direita do Rio Bacanga, em São Luís.
O nome foi emprestado ao local em razão de ter sido propriedade do Físico-mor da então Capitania Geral do Maranhão, Antônio José da Silva Pereira, cuja importância econômica residia no fato de ter abrigado a primeira indústria da região, com o beneficiamento do couro, arroz e ainda a fabricação de cera e cal.


Pois bem! Aí exatamente, foi que minha vida mudou. Escrevi o texto muito empolgado porque o ‘Jornal Pequeno’, o órgão das multidões, tradicional em minha terra, ia finalmente publicar meu primeiro trabalho, após queimar meus dedos tanto tempo tirando provas nas caixas de linotipos. Fui pessoalmente ao sítio do físico com um fotógrafo do jornal, fiz pose, subi nas ruínas; estava me achando o máximo! Cheguei a tirar uma ‘chapa’ com minha carteirinha do JP na mão (repórter-amador).
Voltei para a redação, sentei na mesma máquina que minha mãe escrevia as colunas dela, por anos, e redigi “A História do Sítio do Físico”. Quatro laudas depois, empolgadíssimo, subi as escadas e fui direto à sala de José Ribamar Bogéa, o dono do jornal e entreguei, com um ar de herói: “Pronto, chefe”.
Silêncio absoluto! Foram os minutos mais ansiosos de minha vida. 30 segundos, 1 minuto… 2 minutos… e nada. De repente ele pega um lápis vermelho – daqueles grandes, de ponta grossa – e risca minha reportagem de cima abaixo. E fala: “Mhario, pedi para você fazer uma reportagem jornalística; não uma prosa poética. Desce lá e em 10 minutos me traga novamente ou lhe tomo a carteira…”.
Calado estava, calado fiquei. Peguei o maço de laudas e caminhei para descer as escadas talvez como se, na verdade, ao invés de descer, subisse para um cadafalso qualquer. Lágrimas nos olhos. Ainda tropecei no segundo degrau. Segurei no corrimão e as folhas se dispersaram, caindo pelo vão e se espalhando pela redação quase vazia. Ainda bem, ou teria passado por gozações eméritas. Conhecia as brincadeiras de quem lá trabalhava.
Eloy Cutrim, meu colega de redação, um dos melhores repórteres de polícia do Estado, muito amigo de nossa família e de minha mãe, me viu naquele estado e me explicou quais termos, quantos parágrafos, e como redigir uma reportagem, livrando-me assim, do romantismo poético tendencioso, que insistia em rondar minha cabeça.
Nesse episódio aprendi como é difícil ser um bom jornalista. Não é todo mundo que escreve que pode redigir tecnicamente. Nem todo poeta (e eu me achava um), pode escrever reportagens, pois ser jornalista é seguir normas morais e técnicas, é vivenciar as pessoas envolvidas na história, requer honestidade nas citações, escolhas de termos adequados e outras normas fundamentais. Isso foi aperfeiçoado quando fiz Comunicação Social, na UFMA, tempos depois.


Foi o ‘Jornal Pequeno’, minha escola de vida, onde tive meu ego colocado à parte. Aprendi que não se comemora antes do tempo e o que se escrevia na solidão de uma ‘Remington’ seria lido por milhares de leitores no outro dia. Uma falha sequer, poderia manchar a credibilidade de uma carreira. Por aquela reportagem (a do Sítio do Físico), continuei no JP e anos depois, passei a escrever uma coluna diária.
Foi nessa coluna diária que aconteceu a tal da ‘barrigada’. Voltemos à porta do Tribunal de Justiça: em cima das nove horas da manhã, a autoridade judiciária desce do carro, me olha sentado nas escadarias do Tribunal e sem me cumprimentar passa e diz: “Siga-me”. Arrepiei-me da cabeça aos pés. Entrei com ele, só nós dois, no velho elevador com porta corrediça, uma peça de bronze estonteante, e seguimos direto para o gabinete. Lá ele sentou, pediu um café para ele e outro para mim e disse: “Mhario, te acalma. Teu pai ligou para mim. Repliquei não ter sido necessário”. Comecei a aliviar meus neurônios. E ele então finalizou:
– Mhario, eu fui redator no jornal ‘O Dia’. Uma ocasião, ao escrever uma matéria sobre a vinda de um ministro militar ao Maranhão, troquei os nomes e a matéria foi publicada com esse erro. Pedi ao meu chefe de redação para me deixar ir ao aeroporto. Queria pedir desculpas. E fui. Ao chegar lá, o General estava com as folhas do jornal nas mãos, dando uma boa gargalhada. Aproximei-me dele, me identificando como repórter e automaticamente pedi desculpas. Ele passou as mãos em minha cabeça e replicou: Não há o que desculpar quando algo dá errado com um jornalista honesto, inteligente e temente a Deus”.
Deu de ombros e perdeu-se no Aero Willys, com placa oficial, que o esperava à porta.
Mhario Lincoln – Jornalista profissional e presidente da Academia Poética Brasileira