Nós nos acostumamos a “ler” a cidade, ou as cidades, nos escritos poéticos, como cenários pop, punk-urbanos, tecnológicos, darks, paisagens de consumo ou escrituras da periferia. E é claro que estes são, digamos assim, lugares-comuns de sua representação e de seu reconhecimento. Fazem parte do desejo de controle e universalidade que o território urbano possui, como um redemoinho, que a tudo arrasta para si.
Mas, se compararmos cidades brasileiras como São Paulo, Brasília, Teresina e Recife, Salvador ou São Luís, para ficarmos apenas nestas, vemos que elas podem ter imensas diferenças. Em concepção, estrutura, espaços, temporalidades. As cidades, mesmo em sua dimensão urbana, não compõem, em sua maioria, hiper-realidades futuristas. E isso também devemos entender como possibilidades de convivência de múltiplas realidades em um mundo contemporâneo. São realidades que não devem ser rechaçadas ou abominadas em nome da atualidade, de uma afirmação dessa atualidade presentista, nem já futurista. Devem, sim, ser compreendidas.
Já não vivemos em supostas vanguardas que precisam rasgar qualquer memória que vier da tradição para autoafirmar-se como movimento e iconoclastia, tudo precisa ser ponderado e considerado.
Em contraste com a representação da metrópole ou da megalópole contemporânea, a maioria das cidades brasileiras fazem parte de um processo histórico de povoamento, construção e formação. Muitas de nossas cidades têm um forte passado colonial e arquitetônico, balizado noutro sentido, o da permanência e da memória social materializadas em casarões que deixam vazar os séculos através de suas janelas, dos seus becos e suas ruas estreitas, das arcadas de pedra e ferro, da iluminação crepuscular sobre os telhados, do calçamento do anoitecer, de uma natureza simbólica insinuante. São caracteres e entranhas de um espaço que naturalmente irá comunicar-se de algum modo com a alma daqueles que o vivem, percebem, sentem – e que o escrevem.
É o caso da cidade de São Luís do Maranhão, uma cidade entre lugares, entre geografias e, portanto, entre sensibilidades diferentes, que vão do sentimento da província à cidade-mundo.
Praça Deodoro
Sombra errática, sem lenitivo,
farrapo humano, despercebido agônico,
pisei infinitas vezes o teu chão coletivo,
de tantos corações mecânicos.
Vejo-te agora, depois de tantas viagens,
a mesma velha Praça, e de lembranças choro,
porque nada vi, em outras paragens,
o que em ti deixei, Praça Deodoro.
Quando emudecerem todos os glóbulos
de minha fétida carne, e o Jornal Pequeno
berrar na primeira página que eu morri,
partindo sem o imortal fardão da academia,
o povo há de cantar a minha poesia
em teus bancos, plantar-me estátua em ti.
(Para o poeta Nauro Machado)
[Alex Brasil. Razões do Corações. Ed. do autor, 2000, p. 103]
Algumas das mais contundentes apresentações do espaço de São Luís estão, sem dúvida, na prosa. São vários os romances que se utilizam da cidade de São Luís, principalmente da velha cidade histórica, com seus sobrados e janelões, ruas históricas, largos e igrejas, na composição de seu enredo. É notório, por exemplo, que as tramas de Josué Montelo são também dramas do lugar, de pertencimentos. Havemos de lembrar não apenas do extraordinário Os tambores de São Luís (1975), mas ainda de Os degraus do paraíso (1965), de Cais da Sagração (1971) e de Largo do Desterro (1981), bem como de tantos outros de seus títulos cujo espaço narrativo irrevogável é a antiga São Luís.
Desde o século XIX, na verdade, o meio e a paisagem ludovicense já se fazia presente de modo determinante e até arquetípico, por exemplo, no livro O Mulato, de Aluízio Azevedo, publicado em 1881. Para dar encaminhamento a toda a história, começa o autor pela carregada descrição da cidade:
Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes, as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças d’água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem-cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido (…)[i].
São Luís nas paisagens poéticas
São Luís pode ser vista como uma cidade lírica, não apenas porque possa se orgulhar de um número significativo de grandes vates, mas porque grandes poetas foram ou são tocados sensivelmente pelo corpo secular de suas paisagens construídas e seus estuários, por sua condição histórica e simbólica, e empreenderam a construção de sua sensibilidade através de sua voz poética.
Uma pena, sem dúvida, é que não se haja ainda compreendido essa importância e todas as suas potencialidades.
Já na segunda metade do século XIX a cidade aparece efetivamente como paisagem poética, ou seja, como um espaço vivenciado, sentido e configurado poeticamente pelo sujeito lírico, apesar de que o período lançava seu olhar principalmente para a natureza, em seu sentido selvagem e arrebatador. Da cidade provincial, são suas áreas amplas, os “flancos do oceano”, os quintais da infância, laranjeiras, mangueiras, como parece aludir Sousândrade, nas paisagens internas de seu Harpas Selvagens (1857). Mas Inácio Xavier de Carvalho, em seus Frutos Selvagens (1894), já escreve no poema O sino de São Pantaleão:
Em minha terra, o sino mais sentido,
o mais triste de todo o Maranhão,
é o grande sino, há muito erguido
da velha e secular São Pantaleão…[ii]
O poema prossegue, e, nele, o sino acaba personificando uma subjetividade lamentosa e soluçante, que dobra pelos entes partidos, num cenário lacerante de uma cidade que já nasce antiga, secular.
É o registro de um exemplo. É, porém, a partir do nosso tardio modernismo, com escritores como Bandeira Tribuzi (1927-1977), Odylo Costa, filho (1914-1979), Nauro Machado (1935-2015), José Maria Nascimento (1940) e, principalmente, José Chagas (1925-2014), Ferreira Gullar (1930-2016) e Arlete Nogueira da Cruz (1936), que a cidade, com seus aspectos, edificações, ruínas e vivências, ganha força temática, simbólica e como motivo literário em si mesmo, no horizonte de uma experiência temporal, contemplativa e social. Podemos dizer que uma abordagem lírico-memorial de São Luís chega a solidificar-se aos poucos e constituir-se numa linha temática frequentada por vários autores.
Tal linha poética vai constituir-se muito provavelmente, não somente influenciada pela historicidade e pela própria arcada do tempo incrustrada nos casarões, seus azulejos e telhados, dando-lhes ar imemorial, mas também pela confluência de olhares que chegam ou retornam à cidade, tais como o de Chagas e Tribuzi, e até mesmo o do piauiense H. Dobal (1927-2008). Este, embora tendo seu chão efetivo em Teresina e Campo Maior, em A cidade substituída (1978) mergulha na paisagem ludovicense e sua evocação[iii] – talvez por influência de Odylo, com quem tinha proximidade, ou do próprio Chagas, o maior cantor da velha Cidade dos Azulejos os e de seus velhos bairros, em todos os tempos.
Não podemos desprezar também o fato de que várias questões estiveram sempre em pauta sobre o patrimônio arquitetônico de São Luís, revitalizações, e tombamentos também vinham sendo pensadas no período, 1955, 1978, 1986 e 1997[iv]. E isso tudo pode ter fluxos comunicantes com olhar dos autores, numa possível contribuição com a percepção em relação a essa paisagem, a qual por sua vez já era extensão da própria casa, da flanêurie poética costumeira no território boêmio da Praia Grande e adjacências, e das suas próprias experiências espaço temporais dos seus bardos.
Devemos ter sempre em mente, também, em relação a essa linha que toca uma lírica memorial do lugar, especificamente no caso do Maranhão e do espaço antigo de sua Capital, é que o centro dessa poesia nem sempre é realmente “o” lugar, ou sua realidade. O lugar, a cidade, surgem muitas vezes como componente fundamental das espessuras e das experiências convocadas na configuração do poema ou da obra, cuja diretriz tem como centro, na verdade, questões relacionadas à condição humana, à existência, ao ser e ao tempo, à vida – e, com ela, os espaços de vivência (relacionados ao estar no mundo, ao contexto) ou de experiência (travessias marcantes das realidades e situações vividas, com seus padecimentos, disposições, afetos e afecções significativas e pessoais, e que nos faz chamar alguém de “experiente”)[v], prerrogativas do fazer poético.
Pois bem, não podendo falar de todos os que merecem, mais detidamente, nem de maneira profunda, pela necessária brevidade deste texto, traremos uma pequena mostra dessa poética.
É com os grandes autores do nosso modernismo que a cidade entra de modo veemente na obra dos autores.
Em Bandeira Tribuzi, encontramos a tensão entre a cidade platônica (o poeta e seu lugar na polis, o qual Tribuzi assumirá como poeta-economista-planejador sensível) e a imagem utópica da terra em sua poética de liberdade pelo amor e pela canção: “Ó minha cidade,/deixa-me viver,/que eu quero aprender/tua poesia… A enfrentar martírios, lágrimas e açoites/, que floriram claros sóis da liberdade” – lemos e ouvimos Louvação a São Luís, hino oficial da cidade. Ele também pinta os cenários do passado, dando o tom de um lirismo saudoso e da vida cotidiana e social: “Neste velho sobrado quantas/ meninas houve, noite alta, escutando rimas e modinhas/ no lirismo das serenatas/(velhas mucamas vigiando/ a ira do senhor da casa)[…]” (O Sobrado[vi]). Ou ainda: “Ao longo da rua o pregão se expande,/ A voz do menino, musical, soluça/ Perdida na chuva, cujo som invade/ A tarde suave como suave música.[…]” (O pequeno vendedor[vii])
Em volume de poemas e obras, porém, é muito provavelmente José Chagas o poeta que mais se dedicou à cidade de São Luís e com ela imbricou o seu poetar, de tal modo que o difícil é, na verdade, encontrar alguma obra na qual não haja essa presença ou sua evocação.
Chagas veio do sertão da Paraíba, filho de lavradores de Piancó, passando pelo Vale do Mearim, Maranhão, porém, como diz o prefaciador do maior canto poético sobre São Luís até agora, Sebastião Moreira Duarte, é “a velha cidade colonial que lhe dará a pedra de definitivo encantamento, com que ele [Chagas] haveria de erigir quase que a totalidade do seu monumento poético”[viii]. O poeta paraibano-maranhense já traz em sua escrita a memória das formas cancioneiras populares, com suas redondilhas e seus arcaísmos, e com esta base, somada à erudição literária, histórica e filosófica, construirá seu monumental Os Canhões do silêncio, livro com o qual, em 1978, recebeu o prêmio no Concurso Literário Bandeira Tribuzi, promovido pela Sociedade de Melhoramentos e Urbanismo da Capital [São Luís], tendo a primeira edição em 1979.
Os Canhões do Silêncio (Fragmentos)
Os telhados estão leves sobre as coisas
a verdade está limpa sobre os telhados
e uma janela espia esta verdade
até onde ela entorna em azul
o seu teor de mistério
[…]
São Luís se mostra à vida
para quem queira ou não queira,
como coisa consumida
em luz, em glória, em poeira.
E nunca se mostra igual,
nem é só uma, são três:
mistura de Portugal
e Holanda, em sonho francês.[1]
(José Chagas)
O poeta José Chagas dedicou ainda grandes obras à cidade, tomadas em geral sobre a dominante do ser e do tempo, em intensas reflexões, sob o (des)amparo do silêncio, da ruína e da solidão. É o que poderemos encontrar em obras como Os telhados (1965), Maré memória (1973), e uma bela crítica sobre os bairros de São Luís, que o poeta faz através dos versos cadenciados de Apanhados do Chão (1994). Ele ainda faria um grande livro, desta vez com grande repertório de sonetos, num barroquismo ácido e denunciante, com o seu Os azulejos do tempo (1999).
Para o poeta Nauro Machado, esse mesmo espaço é o espaço da distopia entre o sujeito e o lugar. Ele já mostra a cidade não como acolhedora e receptiva do poeta, mas descambando para um caráter sombrio e infernal. A cidade é “mãe, madrasta e meretriz” parindo por vezes o abominável. Em sua poética, mostra a imagem de um mundo totalitário, de opressão contumaz, onde o poeta sofre masmorras de injustiça, às quais esmurra com sua palavra visceral. É uma poética que brada com força e pode lançar sua ira sobre o lugar, na sua condição de visão perene e ultrapassagem:
Ó terra má, flor de antraz,
mãe madrasta e meretriz,
dando à minha alma sem paz
o que eu tenho e nunca quis,
no corpo que ainda em mim jaz
pisando o chão de São Luís [ix]
Importante lembrarmos que haverá um momento, um ponto de reconciliação entre a cidade e seu vate, pois ele mesmo entranhou-se na cidade que o encarna, e a cidade, pela altitude do poeta, acaba por baixar seus flancos, podendo hoje acrescentar aos seus epítetos honrosos o de Cidade de Nauro.
Já Ferreira Gullar torna essa polis a recordação originária para o corpo emocional-político que se inscreve como intimidade revolucionária, poesia de bandeira histórica, aliando o imaginário, a emotividade e a sensibilidade ao corpo histórico, de luta, engajado no social. Assim o corpo está, portanto, atravessado pela cidade como reminiscência habitada e como referencial, cujo ponto máximo parece ser o bastante conhecido Poema Sujo (1975). Assim sintetiza o poema: “O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade/ (…) a cidade não está no homem/ do mesmo modo que em suas/ quitandas praças e ruas”[x].
Numa pequena mostra da poesia mais recente que toma em si a cidade ou nela viram visagem, temos as seguintes obras: A litania da velha, de Arlete Nogueira, a mais importante de todas, inclusive já adaptada, em 1999, para um curta. É um poema litânico-simbólico, em que a protagonista representa a própria cidade escareada de São Luís. Continuando: meu poema em prosa, percurso descritivo-reflexivo-telúrico Imagine se Ponge vem beber na Praia Grande, publicado em Os dias perambulado & outros tortos girassóis (2008); o poema-livro No meio da tarde lenta (2012), de Ricardo Leão; Ilha do Amor: tratado do amor natural (2013), de Alberico Carneiro; O futuro tem o coração antigo (2014), belo poema-ensaio de Celso Borges, acompanhado de fotografias dos alunos do Curso Técnico em Artes Visuais do IFMA, e que marca um reencontro do poeta com a cidade; o visceral Éguas! (2017), de Dyl Pires; o extraordinário A Ilha Naufragada ou canção dos insulados (2018), de Natan Campos, o poema Concerto para São Luís, do livro a desordem das coisas naturais (2019), de Bioque Mesito, e muitos outros, antológicos, que inclusive expandem a cidade para muito além do espaço provincial, dos seus becos e crepúsculos.
Além disso, são inúmeros os trabalhos poéticos que continuam a dar voz a esta cidade-ilha secular e a personalidades que com ela já se identificam, como é o caso daquela ternura imorredoura com a qual ficamos, inscrita no referido poema Praça Deodoro, de Alex Brasil, representativa daquele que escreve, dos bardos que compõem o Panteão, e da poeti–cidade que vivenciamos.
Texto: Antonio Aílton
[i] AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. 17 ed. São Paulo, Ática, 1998.
[ii] BRASIL, Assis. A poesia maranhense do século XX. Rio de Janeiro: Imago; São Luís: Sioge, 1994. (p. 54)
[iii] Cf. SANTOS, Silvana Maria Pantoja dos. Literatura e memória entre os labirintos da cidade: representações na poética de Ferreira Gullar e H. Dobal. São Luís: Editora UEMA, 2015.
[iv] COSTA, Flaviano Menezes da. Moradas e memórias: o valor patrimonial das residências da São Luís antiga através da literatura. São Luís: EDUFMA, 2015. p. 41 (nota).
[v] SILVA, Antonio Aílton Santos. Martelo & Flor: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira contemporânea. São Luís: EDUFMA, 2019.
[vi] TRIBUZI, B. In: CORRÊA, R. Modernismo no Maranhão. Brasília: Corrêa e Corrêa Editores, 1989. (p. 236)
[vii] Idem, p. 237.
[viii] In: CHAGAS, J. Os canhões do silêncio. 3 ed. São Paulo: Siciliano, 2002 (Coleção Maranhão Sempre).
[ix] MACHADO, Nauro. Trindade Dantesca (poema). São Luís: Ed. do Autor, 2008 (p. 107)
[x]GULLAR, Ferreira. Toda poesia (1950-1987). 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.