No ano em que o país comemora os 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, mais importante do que fazermos as já conhecidas homenagens, tais quais as que a imprensa brasileira veicula há décadas, assinalando a riqueza da proposta do modernismo, incensando alguns dos nomes de sempre e reafirmando o caráter vanguardista da reunião ocorrida no Teatro Municipal de São Paulo, é importante encararmos a história com o distanciamento que este um século nos proporciona, apresentando uma visão um tanto mais realista da coisa, retirando dos fatos alguns véus que nos impedem de observar o fenômeno com a configuração que de fato teve.
Como bem acentua Maria Eugenia Boaventura, dona de uma mirada crítica acerca do ‘marco introdutório’ do modernismo na cultura do nosso país, a história da literatura deve ter visto muitas semanas de arte mundo afora, contudo,nenhuma tão comemorada quanto a de São Paulo.
Planejada originalmente para acontecer de 11 a 18 de fevereiro daquele ano, a Semana só funcionou realmente por três noites. Ocasião em que os participantes declamaram poemas, encenaram performances, fizeram música e expuseram suas obras de arte, em afronta ao senso estético dominante à época. O estranhamento, há de se dizer, tomou conta dos presentes à leitura de “Os sapos”, de um ausente Manuel Bandeira, por exemplo. Apupos e vaias foram a trilha incidental a dividir espaço com as composições do genial maestro Heitor Villa Lobos.
Na retaguarda do movimento que deu corpo ao câmbio na linguagem artística e cultural de um Brasil de início de século XX, estavam artistas paulistas que viviam entre São Paulo e Paris, influenciados pelas vanguardas europeias com as quais tiveram contato e que resolveram trazer para nossas terras, introduzindo-as a partir da arte produzida por algumas figuras de talento daquele, como Anita Malfatti, que em 1917 já havia exposto com relativo sucesso suas telas, em consonância com os cânones da modernidade europeia.
No embalo das novidades que pretendiam apresentar, o grupo de 22 decidiu realizar a semana que anunciaria ao país a chegada dos novos tempos da nossa cultura, institucionalizando o caminho da superação dos velhos modelos literários, poéticos, dos formalismos com cheiro de naftalina. Por tabela, e na esteira do movimento, aproveitariam a vitrine para tornarem-se visíveis à sociedade, venderem suas obras, disseminando uma nova estética e, o mais importante, para tirar o foco e mover o eixo cultural brasileiro do Rio de Janeiro para São Paulo. Algo que lembrasse (ainda que vagamente) uma espécie de Renascença paulista, incensada pelos artigos, textos e crônicas que seus próprios mentores (Menotti del Picchia, Oswald e Mário de Andrade) tratavam de publicar nos maiores jornais da época. Não à toa tê-los reverenciado Graça Aranha, ao saber do que se apresentara durante o evento, a ponto de afirmar ter visto ali a prova da “ascensão espiritual da jovem inteligência brasileira”.
A par de qualquer conclusão a que possamos chegar em relação à semana, há quem afirme (Boaventura, 2000) que fora planejada com o suporte da elite econômica de São Paulo (da qual faziam parte alguns dos participantes) como um projeto de ‘atualização do Estado’. Elite esta enriquecida ao ponto de começar a dedicar-se ao ócio criativo e, por consequência, à produção e consumo de arte.
Mas, voltando às questões em torno do evento, pode-se perguntar: Como dar a ele uma conotação nacional/nacionalista? Como envolver algum sentimento de apropriação ou recepção positiva ao happening de um pequeno grupo? O que poderiam fazer seus líderes para que uma simples reunião pudesse assumir ares de grandeza? Que tal propor um nativismo estetizado?! E se fizéssemos da fala coloquial o tom maior das nossas obras literárias e da gente simples os modelos de nossas telas?!
Afinal, visar a identidade pátria, o orgulho de ser brasileiro, mediante a demolição das estruturas normativas da arte até então praticada, por certo que poderia mexer com os brios tupiniquins. E mexeu, sim! Mas não instantaneamente, como já se sabe. Nem com a amplitude que hoje os estudiosos, a academia e a mídia buscam incutir. Verdade seja dita, a Semana, planejada para assentar as fundações de uma virada histórica para a arte ali espelhada, a par de alguns bons nomes nela descobertos, tem sido (e continua a ser)glorificada à custa de toda uma mitologia heroica soerguida ao passar das décadas.
Entre o silêncio dos que a ignoram e o ufanismo dos que a aplaudem até hoje, prefiro sustentar a tese de que o verdadeiro modernismo brasileiro (se assim pudermos dizer) manifestou- -se com imensa qualidade muito depois da Semana de 22. Foi somente da década de 30, daquele século, em diante, que o Brasil viu surgir uma rica geração de criadores no campo cultural. Inclusive veria brilhar aqueles que nunca quiseram ter seus nomes vinculados às ideias propagadas junto ao mise em scène do grupo de artistas que articularam o evento de São Paulo.
As décadas de 30, 40 e 50 do século XX, com as duas gerações de autores que aqui, por mero didatismo, chamarei de modernistas, foi realmente digna de orgulhar a todos os que vivem intensamente a cultura nacional. E tudo isso feito de forma austera, sem os arroubos de patriotismo encampados no discurso que fundara a Semana, ainda que com a manutenção de parte do seu ideário e de certas características do movimento, com nomes de peso como Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Ferreira Gullar, Clarice Lispector, Jorge Amado, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo e João Cabral de Melo Neto, apenas para ficarmos com alguns integrantes do campo literário.
A festa cultural dos artistas paulistanos, a meu ver, fez menos sentido em seu tempo do que depois, quando, inclusive, influiu positivamente no âmbito político, cultural e educacional do próprio Estado de São Paulo, com a criação de importantes instituições públicas e privadas ainda sob o influxo das ideias ali reverenciadas.
Coube, portanto, aos primeiros modernistas, além da ousadia da iniciativa (que ajudou a criar todo um mito e sua cosmogonia), a tarefa de mostrarem a cara, causarem impacto e saírem na frente, pensando e implementando as estruturas básicas da engrenagem cultural que, décadas após, tomaria impulso e ganharia potência, dando ao país um tesouro definitivo: o verdadeiro Olimpo do seu cânone artístico-literário.
A Semana de Arte Moderna de 22, a bem da verdade, parece nunca haver terminado.
*Rogério Rocha é escritor/poeta e filósofo. Promove vídeos com debates e entrevistas com filósofos e literatos no YouTube, canal Roger Filósofo.